sexta-feira, julho 29, 2005

Histórias de viajantes

A LEITURA REFERIDA no post precedente me deu o alimento espiritual certo para refletir sobre um de meus mais recorrentes temas-fetiche. Sou uma pessoa tomada por eles, quase todos recorrentes como delírios borgianos que, de tempos em tempos, emergem dos recônditos labirintinos da memória e da escrita.

Mas desviamo-nos do tema. Assim como meu grande amigo autor do blog "Crônicas do Explorador deitado na rede" (ver links), tenho paixão pelo topos das grandes viagens e aventuras de exploração. Porém, ao contrário dele, que é fascinado pelas navegações e pela epopéia polar, o que me atrai são as áridas regiões do globo (aqui, assalta-me a memória o célebre haiku de Bashô: "cansado de andar, vago em sonho pelas áridas regiões."), os desertos quentes e frios e todas aqueles lugares onde apenas "ingleses e cachorros loucos saem ao sol do meio-dia" (aliás, creio que é Ondaatje que se refere ao fato de que os ingleses amam o deserto porque ele reflete de forma precisa uma parte do cérebro daquele povo). De qualquer maneira, os relatos e descrições das grandes viagens ao coração do Saara, Gobi, Thar e ao interior australiano exercem peculiar atração sobre mim, o que é motivo freqüente para reler e rever filmes e livros sobre o tema. Tal é, portanto, o assunto deste post: uma reflexão sobre o deserto e o universo dos exploradores no cinema.

Mountains of the Moon [EUA, 1990. Direção de Bob Rafelson]. Embora não trate propriamente de viagens ao deserto, este é um dos melhores filmes já feitos sobre explorações épicas. O tema são as tentativas feitas pelo legendário Capitão Richard Francis Burton (Patrick Bergin) e John Hanning Speke (Iain Glen) de encontrar a nascente do Rio Nilo. O aspecto mais intrigante, porém, é o fato de que, ao contrário do que ocorreria em um dos grandes filmes de John Huston, por exemplo, a natureza indômita não emerge aqui como o principal personagem do filme. Claro que, em qualquer outra situação, isso seria um grande defeito. Mas Rafelson consegue transformar essa idiossincrasia na grande força do filme, deixando o palco principal para a dificuldade das relações humanas. É assim que temos a oportunidade de ver personalidades multidimensionais nos personagens de Burton e Speke, sentindo o travo amargo da amizade de dois grandes homens ser envenenada pela vaidade e pela cupidez manipuladora de pessoas com Oliphant (Richard E. Grant), ao mesmo tempo podemos admirar o caráter extraordinário da grande personagem "secundária" que é a Sra. Isabel Burton, née Arundell (Fiona Shaw), dona da melhor frase do filme: "se eu fosse um homem, seria o Capitão Richard Burton". Mesmo nos mais importantes momentos das expedições africanas, o filme se prende ao relacionamento de Burton e Speke e outros dramas humanos, como a escravização de vencidos por outras tribos negras e a tirania dos régulos locais, desprezando os rigores da paisagem e a determinação sobre-humana de vencer o desconhecido. Como se vê, Bob Rafelson fez uma escolha insólita acerca do ponto de vista narrativo, mas acertou em cheio ao fazer um dos grandes filmes sobre o tema, ainda que o tempo tenha sido injusto com esse filme, tornando-o pouco conhecido do grande público.

The Man Who Would be King [Reino Unido/EUA, 1975. Direção de John Huston]. Costumo me referir a essa obra como "o melhor filme de todos os tempos"! A epopéia colonial particular de Daniel Dravot (Sean Connery) e Peachy Carnehan (Michael Caine), dois vagabundos que se valem do único conhecimento que têm – a experiência como militares do exército britânico – para conquistar alguma região selvagem da Terra e lá se estabelecerem como reis. Aspirando tal nobre intento, partem os dois para a montanhosa terra do Cafiristão, onde uma curiosa mistura de lendas referentes à vinda do herdeiro de Alexandre, o Grande, e vestígios de um passado maçônico conspiram para tornar realidade a ambiciosa meta. Porém, como dizem alhures, é bom ter cuidado com o que se deseja, pois o desejo pode vir a tornar-se realidade. E não tarda para que o plano dos dois aventureiros vitorianos comece a romper nas costuras... Bem, falar mais é tirar parte do prazer que é assistir a esse filme extraordinário, baseado em obra de Rudyard Kipling (interpretado no filme por Christopher Plummer). Novamente, aqui não há desertos, mas a aventura por terrenos inóspitos e o "white man’s burden" da empresa colonial britânica estão lá com força total.

Burke & Wills [Austrália, 1985. Direção de Graeme Clifford]. Uma pequena e pouco conhecida jóia, essa recriação da trágica viagem dos exploradores Robert O’Hara Burke (Jack Thompson) e William J. Wills (Nigel Havers) pelos desertos australianos no início da década de 1860. Em virtude de vários rios australianos correrem para o então desconhecido interior do país, chegou-se a cogitar, na época, a existência de um vasto mar interior – o que facilitaria a expansão dos contingentes humanos, restritos à faixa litorânea do sudeste, por todo o vasto país-continente. Bem, como hoje se sabe, não há qualquer mar interior ou grande lago na Austrália, e o destino de muitos rios é evaporar à medida que se aproximam do tórrido interior arenoso. Eis que a expedição de Burke e Wills, lançada com o intento de percorrer a Austrália de sul a norte, se vê em trágicos problemas, uma vez que os suprimentos se esgotam e a morte é certa para todos os seus integrantes, à exceção do jovem John King (Matthew Fargher), que sobrevive com a ajuda dos aborígenes até ser resgatado por um grupo de buscas e dar ao mundo conhecimento dos últimos dias da malfadada aventura. O filme tem cenas antológicas, como o momento em que um dos exploradores tenta lançar apontamentos em seu diário e verifica que a mina de seu lápis derrete no abrasador calor do deserto, ou o profético passeio pelo labirinto-jardim na verdejante Albion.

The English Patient [EUA, 1996. Direção de Anthony Minghella, baseado no romance de Michael Ondaatje]. Esse dá pretexto para falar do filme e do livro. A obra do "cingalês-canadense" Michael Ondaatje é um primor de literatura, com palavras cortantes e ásperas como seixos, parcimoniosa, deixando muito espaço para a imaginação do leitor explorar os fragmentos de história, sonho, memória e delírios induzidos por morfina que emergem da paisagem árida como os platôs rochosos do deserto líbio. Sem dúvida, um dos melhores romances de língua inglesa dos últimos quinze anos. O filme de Minghella captura muito bem a essência da história e seus melhores momentos (para melhor efeito dramático, algumas cenas e falas são atribuídos a personagens diferentes daqueles que as proferem no livro). É muito interessante, porém, saber do contraste entre o personagem-título, o conde húngaro Ladislau Almásy e a figura histórica de mesmo nome. O Almásy de Ondaatje-Minghella, interpretado por Ralph Fiennes, é um explorador taciturno, tomado pela súbita obsessão por Katharine Clifton (Kristin Scott Thomas), aristocrática esposa de um colega explorador, Geoffrey Clifton (Colin Firth), cujo trágico desfecho faz de Almásy um colaborador do Afrika Korps nazista e, finalmente, a figura mutilada espiritual e fisicamente que expira seus últimos momentos num mosteiro em ruínas na Itália, sob os cuidados da enfermeira Hana (Juliette Binoche). O Almásy histórico, notório homossexual, aproximou-se dos exércitos italiano e alemão na África do Norte como forma de continuar suas pesquisas no deserto e a obsessiva busca pelo oásis perdido de Zerzura. Ao contrário de sua encarnação ficcional, Almásy não morreu devido a queimaduras desfigurantes nos últimos dias de 1944, mas viveu até 1951, tendo brevemente ocupado o cargo de diretor do Egyptian Desert Institute, posição que almejava desde a década de 1930. Permito-me, porém, em atenção ao tema deste post, não divagar sobre a imensa riqueza de detalhes dessa obra, tais como os detalhes da vida e do arriscado trabalho levado à cabo pelos sapadores na Itália de 1944, infestada de bombas não explodidas e armadilhas preparadas pelo exército nazista em retirada, ou o debate final sobre o racismo ocidental implícito na decisão de lançar as bombas atômicas contra os japoneses, povo "não-branco". Ficam aqui as recomendações mais veementes para a leitura desse livro excepcional e a apreciação do filme, igualmente notável.

Mais sobre este tema em breve...

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Emerson! Quintana realmente é muito bom, não? Só não é melhor que meu guru, meu personal Obi Wan Kenobi, Vinícius de Moraes :)Eu também adoro The Man Who Would Be King, o Sean Connery está bárbaro, o roteiro é fantástico, bela escolha! Já nas histórias de exploradores do Felipe, o que me atrai é a força, o triunfo da vontade, como diria a Leni Riefenstahl (infamous reference...), o exemplo de superação. Beijo pra você e pras suas meninas.

Anônimo disse...

Ola tudo bem vc sabe onde eu encontro o filme Burke & Wills estou caçando mais não acho..uma vez passou na globo mas não sei se e com esse titulo abraços obrigado