quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Mozart

EM "MADAME BOVARY", Flaubert escreveu:

A fala humana é como uma chaleira rachada, na qual batucamos ritmos toscos para os ursos dançarem, enquanto ansiamos por fazer uma música que derreta as estrelas.

Sei que não é nisso exatamente que o celebrado escritor estava pensando, mas sempre que penso nessa frase, lembro-me que tal música já existe. Trata-se, naturalmente, do Kyrie da Missa de Réquiem, aquele canto do cisne do Gênio de Salzburgo.

O indescritível poder da tessitura vocal dessa peça é algo completamente sobrenatural. Eu, que só pude ouvir gravações, não consigo deixar de imaginar a impressão causada por sua execução, sei lá, numa catedral, com a reverberação certa. Não seria preciso muito esforço para sentir o edifício romper sua materialidade de pedra e deixar os próprios alicerces, alçando os espaços infinitos cujo silêncio assombrava Pascal. O Kyrie do Réquiem de Mozart é mais assombroso que o Universo mesmo.

[Com pequeno atraso, fica aqui essa postagem para a efeméride mozartiana de 2006].

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Sutor, ne supra crepidam!

AINDA NA SÉRIE das anedotas histórico-mitológicas coligidas para deitar lume aos espíritos embuçados na treva que ora grassa, qual sombras tomadas às hostes de Plutão, vai esta simpática historinha sobre a necessidade de ater-se cada qual a seu quinhão de experiência ou conhecimento:

Viveu na corte de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), um célebre e talentoso pintor, de nome Apeles. Ocorre que, a despeito de sua virtuosística técnica pictórica, o bom Apeles era sujeito humilde, cioso das críticas e reparos que porventura fizessem de sua obra. Costumava, por isso, esconder-se perto dos trabalhos em exposição, a fim de bisbilhotar os comentários feitos à sua arte. Certo dia, um concidadão que vivia do ofício de sapateiro criticou, certamente com conhecimento de causa, o calçado de uma figura retratada em pintura de Apeles. De seu esconderijo, o artista ouviu a fala e houve por bem corrigir o detalhe.

Qual não foi, porém, a surpresa de Apeles ao constatar, no dia seguinte, que o tal sapateiro, vendo o trabalho refeito e, em conseqüência, julgando-se autorizado pelo reconhecimento de sua "reputada" opinião no mundo das artes, punha-se a criticar outras partes da pintura! Aí também já é demais! Apeles saltou de seu esconderijo e, certamente com o dedo em riste, passou sabão no abusado: "Sutor, ne supra crepidam!", teria dito ele (se falasse latim...) -- ou seja, "sapateiro, não vá além das sandálias!"

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

"... we band of brothers!"

DEPOIS DE UNS DOIS meses morrendo de vontade de rever a pequena obra-prima que é Henry V [Reino Unido, 1989. Direção de Kenneth Branagh], e de não encontrá-la nas locadoras brasilienses especializadas em títulos "de arte" (!), acabei caindo na tentação de comprar o DVD. Com a shakesperiana fome saciada, cumpre exaltar, neste humilde foro, as (muitas) qualidades da obra!

Em primeiro lugar, a brilhante adaptação, dirigida e interpretada pelo então jovem e quase rechonchudo Branagh, não bastando em sua própria excelência, ainda teve a honra de resgatar o interesse do público pela cinematografia inspirada no bardo de Stratford-upon-Avon. Depois desse filme, vieram à tela prateada interpretações de maior ou menor valor, com variados graus de ousadia ou de purismo canônico - incluindo-se Much Ado About Nothing [Reino Unido/EUA, 1993. Direção de Kenneth Branagh], Othello [Reino Unido/EUA, 1995. Direção de Oliver Parker], Hamlet [Reino Unido/EUA, 1996. Direção de Kenneth Branagh, dentre as várias que povoaram as telas recentemente], Looking for Richard [EUA, 1996. Direção de Al Pacino, sobre os bastidores de uma montagem de Ricardo III], um tal (céus!) de Romeo + Juliet [EUA, 1996. Direção de Baz Luhrmann], ou o mais recente The Merchant of Venice [EUA/Itália/Luxemburgo/Reino Unido, 2004. Direção de Michael Radford]. Isso sem falar (céus!) na oscarizada retratação do próprio Bill Shaxpear (como era engraçada a fluidez do idioma e da grafia de nomes na elizabetana Albion!) apresentada em Shakespeare in Love [EUA/Reino Unido, 1998. Direção de John Madden]. Todos esses filmes, e talvez mais alguns, devem sua existência à exitosa empreitada de Branagh em Henry V.

Uma das grandes sacadas do filme é a simplesmente fantástica, inesquecível e gloriosa presença de Sir Derek Jacobi como "coro"! O venerando ator coloca toda sua preciosíssima elocução do texto original já na abertura, conduzindo a imaginação do tablado teatral para os dias sombrios de mais um capítulo da Guerra dos Cem Anos, quando o jovem rei Henrique V busca fazer seus direitos ao trono de França, cujo direito lhe atesta o arrazoado genealógico e jurídico apresentado pelo Arcebispo da Cantuária, e, depois, levando o espectador para as sucessivas cenas de Southampton (a parte dos traidores, genial!), Harfleur, Agincourt e Paris. No fim, cerrando as portas que abrira na primeira cena, Jacobi (que cara de tio afável ele tem!) pondera sobre como todo aquele espetáculo de lama, suor e sangue acabaria no nada, quando após a morte do glorioso príncipe, as possessões inglesas na França foram perdidas por seus sucessores.

E, entre essas duas tomadas, Branagh conseguiu reunir um cast verdadeiramente estelar, incluindo Dame Judi Dench (como Nell Quickly), Brian Blessed (o brutamontes tio Exeter), o então pirralho e presente Batman, Chris Bale (pajem de Falstaff), Robbie Coltrane (como o próprio Falstaff), Ian Holm (tenente Fluellen), Emma Thompson (princesa Catherine) e Paul Scofield (Charles VI). Desse ninho de téspios da mais fina estirpe fluem as linhas que Shakespeare escreveu! Anoto aqui algumas das mais belas passagens:

1. Do flamígero prólogo do Coro:

O for a Muse of fire, that would ascend
The brightest heaven of invention,
A kingdom for a stage, princes to act
And monarchs to behold the swelling scene!
Then should the warlike Harry, like himself,
Assume the port of Mars; and at his heels,
Leash'd in like hounds, should famine, sword and fire
Crouch for employment. But pardon, and gentles all,
The flat unraised spirits that have dared
On this unworthy scaffold to bring forth
So great an object. Can this cock-pit hold
The vasty fields of France? or may we cram
Within this wooden O the very casques
That did affright the air at Agincourt?
O, pardon! since a crooked figure may
Attest in little place a million;
And let us, ciphers to this great accompt,
On your imaginary forces work.
Suppose within the girdle of these walls
Are now confined two mighty monarchies,
Whose high upreared and abutting fronts
The perilous narrow ocean parts asunder.
Piece out our imperfections with your thoughts;
Into a thousand parts divide on man,
And make imaginary puissance;
Think when we talk of horses, that you see them
Printing their proud hoofs i'th' receiving earth;
For 'tis your thoughts that now must deck our kings,
Carry them here and there; jumping o'er times,
Turning the accomplishment of many years
Into an hourglass -- for the which supply,
Admit me Chorus to this history;
Who Prologue-like your humble patience pray,
Gently to hear, kindly to judge, our play.


Que este vosso humilde escriba tem a ousadia de traduzir, sem os ricos paramentos do metro e da rima, como:

"Ah, por uma ígnea musa que ascendesse
Ao mais brilhante firmamento da invenção!
Um reino por um palco, príncipes para atua
E monarcas para contemplar a comovente cena!
Então poderia o beligerante Harry, digno do nome,
Assumir o porte de Marte; e a seus pés,
Como cães encilhados, iriam a fome, a espada e o fogo
Aguardar seu uso. Mas, perdoai, gentis espectadores,
As toscas almas ignaras que ousaram,
Neste indigno palco, trazer
Tão glorioso tema. Pode esta rinha comportar
Os vastos campos de França? Ou podemos nós confinar
Neste madeirame, ah!, os verdadeiros elmos
Que trouxeram pasmo ao ar de Agincourt?
Ah, perdoai! Pois pode uma canhestra figura
Representar, em pequeno espaço, uma legião;
E deixai que nós, insignificante cifra nesse grande cômputo,
Trabalhemos vossas forças da imaginação.
Imaginai que no amplexo destes muros
Estão agora confinadas duas poderosas monarquias,
Cujas frontes, soerguidas e fronteiriças,
Fende o perigoso e estreito oceano.
Desfazei nossas imperfeições com vosso pensamento;
Em mil partes dividi um único homem,
E fazei potência da imaginação;
Ao dizermos ‘cavalo’, pensai que os vêdes
Premindo na acolhedora terra seus cascos orgulhosos;
Pois é agora vosso pensamento que deve paramentar nossos reis,
E conduzi-los para cá e para lá, saltando no tempo,
E reduzindo o resultados dos muitos anos
Numa hora de ampulheta – por cujo período,
Admiti-me coro desta história;
Que, à guisa de prólogo, pede à vossa humilde paciência,
Com bonomia, ouvir; com indulgência, julgar, nossa peça!"


2. Da resposta do rei Henrique à ofensa do Delfim de França, que zomba do pleito do inglês a ducados franceses enviando a Henrique bolas de tênis, as quais julga mais apropriadas a um monarca que ele, o Delfim, julga pueril e parvo (Ato I, Cena 2, linhas 259-297):

We are glad the Dauphin is so pleasant with us;
His present and your pains we thank you for:
When we have march'd our rackets to these balls,
We will, in France, by God's grace, play a set
Shall strike his father's crown into the hazard.
Tell him he hath made a match with such a wrangler
That all the courts of France will be disturbed
With chases. And we understand him well,
How he comes o'er us with our wilder days,
Not measuring what use we made of them.
We never valued this poor seat of England;
And therefore, living hence, did give ourself
To barbarous licence; as 'tis ever common
That men are merriest when they are from home.
But tell the Dauphin I will keep my state,
Be like a king and show my sail of greatness
When I do rouse me in my throne of France:
For that I have laid by my majesty
And plodded like a man for working-days,
But I will rise there with so full a glory
That I will dazzle all the eyes of France,
Yea, strike the Dauphin blind to look on us.
And tell the pleasant prince this mock of his
Hath turn'd his balls to gun-stones; and his soul
Shall stand sore charged for the wasteful vengeance
That shall fly with them: for many a thousand widows
Shall this his mock mock out of their dear husbands;
Mock mothers from their sons, mock castles down;
And some are yet ungotten and unborn
That shall have cause to curse the Dauphin's scorn.
But this lies all within the will of God,
To whom I do appeal; and in whose name
Tell you the Dauphin I am coming on,
To venge me as I may and to put forth
My rightful hand in a well-hallow'd cause.
So get you hence in peace; and tell the Dauphin
His jest will savour but of shallow wit,
When thousands weep more than did laugh at it.
Convey them with safe conduct. -- Fare you well.


Que, mais uma vez, traduzo:

"Felizes estamos com que o Delfim seja tão amável para conosco;
Por seu presente e por vossos esforços, agradecemos!
Quando tivermos ajustado nossas raquetes a estas bolas,
Jogaremos, com a graça de Deus, uma partida em França
Que derrubará de seu pai a coroa!
Dizei a ele que buscou desafiar tal adversário
Que todas as quadras de França serão tomadas
Com nossa disputa. E que o compreendemos bem,
Como vem ele nos censurar por nossa juventude passada,
Sem fazer caso do uso que dela fizemos.
Nunca havíamos dado valor a este humilde trono da Inglaterra;
E, portanto, cá vivendo, nos entregamos
Ao bárbaro folgar; pois sói ser comum
Que sejam os homens mais alegres quando estão em casa.
Mas, dizei ao Delfim que mantenho minha palavra
E, como um rei, desfraldo minha grandeza,
Ao ascender ao trono de França.
Pois cá despi-me de majestade
E labutei como o jornaleiro,
Mas, lá, hei de erguer-me com tal glória
Que ofuscarei todos os olhares de França,
Sim, cegarei o Delfim quando este nos contemplar!
Sim, dizei ao amável príncipe que sua zombaria
Transformou estas bolas em balas de canhão; e que sua alma
Será fustigada pela pródiga vingança
Que, com elas, há de voar: pois milhares de viúvas
Essa zombaria partirá de seus maridos;
Partirá mães de seus filhos, derrubará castelos;
E muitos que ainda não nasceram
Terão motivos para maldizer o escárnio do Delfim.
Mas, tudo é como Deus quer,
E a Deus apelo, e em Seu nome,
Dizei ao Delfim que venho,
Para vingar-me como puder e para tomar
Em minha justa mão uma justa demanda.
Então, ide daqui em paz, e dizei ao Delfim
Que sua troça saberá a torpitude,
Quando milhares chorarem mais do que riu ele.
Levai-os em segurança. – Passar bem!"

3. E, ainda mais estentórea, da resposta que Exeter traz em embaixada ao rei de França (Ato II, Cena 4, linhas 99-100):

[...]
Therefore in fierce tempest is he coming,
In thunder and in earthquake, like a Jove [...]

Ou seja:

"[...]
Envolto em feroz tempestade ele vem,
Em meio a trovões e terremotos, qual um Júpiter [...]"

e, ao Delfim, traz ele, de Henrique (idem, linhas 117-126):

Scorn and defiance, slight regard, contempt;
And anything that may not misbecome
The mighty sender, doth he prize you at.
Thus says my king: an if your father's highness
Do not, in grant of all demands at large,
Sweeten the bitter mock you sent his majesty,
He'll call you to so hot an answer for it
That caves and womby vaultages of France
Shall chide your trespass and return your mock
In second accent of his ordinance.

"Escárnio e desafio, pouco caso, desprezo;
E tudo o mais que possa não destoar
Do augusto remetente, deseja ele a ti.
Assim diz o meu rei! E se Sua Alteza, o vosso pai,
Acedendo às demandas de meu rei, não
Adoçar a amarga zombaria que vós enviastes a Sua Majestade,
Ele há de dar-te tão extremada resposta por ela
Que mesmo as cavernas e os seguros abrigos de França
Hão de reprovar vossa ofensa e devolver vossa zombaria,
Em consonância com o comando de meu rei."

4. Mas atrás, da férrea sentença pronunciada contra os traidores -- Richard, Conde de Cambridge; Henry, Lorde Scrope de Masham; e o cavaleiro Sir Thomas Gray. Vale lembrar, também nesta cena, o saboroso ardil para enredar os quase regicidas nas teias de sua própria maledicência, quando se propõe a anistiar um súdito que, embriagado, criticara o rei ainda na véspera, a que os três celerados se opõem, instando o rei a não demonstrar tibieza com a clemência -- a mesma clemência que, em vão, buscam extrair dele para si mesmos quando se vêem descobertos em seu intento assassino (Ato II, Cena 2, linhas 162-178):

God quit you in his mercy. Hear your sentence.
You have conspired against our royal person,
Join'd with an enemy proclaim'd and fixed,
And from his coffers
Received the golden earnest of our death,
Wherein you would have sold your king to slaughter,
His princes and his peers to servitude,
His subjects to oppression and contempt
And his whole kingdom into desolation.
Touching our person seek we no revenge,
But we our kingdom's safety must so tender,
Whose ruin you have sought, that to her laws
We do deliver you. Get you therefore hence,
Poor miserable wretches, to your death;
The taste whereof, God of his mercy give
You patience to endure, and true repentance
Of all your dear offences. -- Bear them hence.

Ou, em bom português:

"Que Deus vos acolha em Sua piedade. Ouçam, pois, vossa sentença.
Vós haveis conspirado contra nossa real pessoa,
Aliando-se a nosso inimigo jurado,
E, de seus cofres,
Recebestes o ouro de nossa morte,
Pelo qual venderam vosso rei ao massacre,
Seus príncipes e seus pares à servidão,
Seus súditos à opressão e ao desprezo
E todo o seu reino à desolação.
De vosso crime contra nós, não buscamos vingança,
Mas, devemos, nós, cuidar tanto da segurança de nosso reino,
Cuja ruína vós procurastes, que a suas leis
Vos entregamos. Então, ide daqui,
Pobres desgraçados, para a vossa morte,
Cujo gosto, Deus vos dê, em Sua piedade,
Paciência de enfrentar, e legítimo arrependimento
De vossos crimes. – Levai-os daqui!"

5. E, finalmente, do mais decantado chamado às armas e apologia da amizade castrense já escrito pela pena de qualquer artista, que empresta seus gloriosos versos ao título deste post, proferido diante do campo de Agincourt! Nesta cena, o nobre inglês Westmorland lamenta não ter, nas hostes de Henrique, mais dez mil dos homens que, naquele mesmo dia, descansavam de seus afazeres no solo pátrio. A que Henrique responde (Ato IV, Cena 3, 18-67):

What's he that wishes so?
My cousin Westmoreland? No, my fair cousin.
If we are mark'd to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God's will, I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It earnes me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God's peace, I would not lose so great an honour
As one man more, methinks, would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more.
Rather proclaim it presently through my host
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart. His passport shall be made
And crowns for convoy put into his purse.
We would not die in that man's company
That fears his fellowship to die with us.
This day is called the Feast of Crispian.
He that outlives this day and comes safe home
Will stand a tip-toe when the day is named
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day and live t'old age
Will yearly on the vigil feast his neighbours
And say 'To-morrow is Saint Crispian.'
Then will he strip his sleeve and show his scars
And say, 'These wounds I had on Crispin's day.'
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he'll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words --
Harry the king, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester --
Be in their flowing cups freshly remember'd.
This story shall the good man teach his son,
And Crispin Crispian shall ne'er go by
From this day to the ending of the world
But we in it shall be remember'd,
We few, we happy few, we band of brothers.
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne'er so vile,
This day shall gentle his condition.
And gentlemen in England now abed
Shall think themselves accursed they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin's day.

Que traduzo assim:

"Quem deseja isso?
Tu, meu primo Westmoreland? Não, bom primo!
Se estamos marcados para morrer, somos já muitos
Para fazer falta a nosso país; e, se para viver,
Quanto menos homens, maior a nossa glória!
Por Deus, peço-te: não deseje um só homem a mais!
Por Júpiter! Não sou homem de cobiçar ouro,
Nem me importo com quem come às minhas custas;
Não me amola que vistam as minhas roupas;
Tais coisas materiais não estão nos meus desejos.
Mas, se pecado for cobiçar a glória,
Então sou a mais criminosa alma vivente.
Não, meu primo, não desejai um só homem da Inglaterra.
Por Deus, eu não suportaria perder tamanha glória
Que um homem a mais, penso, tiraria de mim
Por melhor que para mim seja. Ah, não desejai um só a mais!
Ao contrário, ide e dizei à minha hoste
Que, aquele que não tiver estofo para essa luta,
Deixai-o partir. Seu salvo-conduto será expedido
E coroas para a viagem serão colocadas em sua bolsa.
Não queremos morrer na companhia daquele
Que teme morrer conosco.
Hoje é Dia de São Crispim!
Aquele que sobreviver a este dia, e retornar em segurança à casa
Erguer-se-á quando este dia for mencionado
E se exaltará ao nome de Crispim!
Aquele que viver este dia e chegar a provecta idade
Irá, todos os anos, na véspera desse dia, dar de cear a seus vizinhos
E dirá: ‘Amanhã é Dia de São Crispim’.
Ele então despirá a manga e mostrará suas cicatrizes
E dirá: "Estas feridas, tomei-as no Dia de São Crispim’.
Os velhos esquecem, mas nem tudo será esquecido,
Pois ele se lembrará, muito bem,
Dos feitos que realizou naquele dia. Então, serão nossos nomes
Familiares em sua boca como parentes próximos:
Harry, o rei; Bedford e Exeter;
Warwick e Talbot; Salisbury e Gloucester –
Serão, em meio a taças cheias, relembrados!
Esta história o bom homem ensinará a seu filho,
E o nome de São Crispim jamais será lembrado,
Deste dia até o final dos tempos,
Sem que nele sejamos relembrados,
Nós, poucos; nós, poucos e felizes; nós, bando de irmãos!
Pois aquele que hoje verter o seu sangue comigo
Será meu irmão; por mais vil que seja
Este dia há de aliviar sua condição.
E os gentis-homens que agora dormem no leito, na Inglaterra,
Julgar-se-ão amaldiçoados de não estar aqui,
E duvidarão da própria masculinidade quando alguém disser
Que lutou conosco no Dia de São Crispim!"

Claro que, além dessas, há outras cenas com o poder de gravar-se a fogo em nossos neurônios, tais como o enforcamento do velho Bardolph; as parlamentações com o digno arauto francês; a ígnea ameaça de Henrique ao povo de Harfleur; a vigília nos dois acampamentos às vésperas da batalha de Agincourt, quando Henrique, anônimo, ouve o desassossego de suas tropas e ora ao Senhor dos Exércitos pelo resultado do dia que raia; a lição de inglês da princesa Catherine, e por aí vai...

Como resultado, só confirmamos que o velho Shakespeare sabia preparar uma mistura explosiva com suas palavras de ouro! Palavras que o bom Kenneth Branagh teve o bom senso, a fineza, a ousadia e a esperteza de repetir, quase que verbatim, e com bela dicção, em seu Henry V! Claro que sempre há quem queira conduzir debate para a querela da "melhor versão" -- se essa ou a que Sir Laurence Olivier fez sob encomenda do governo britânico, como parte do esforço de mobilização patriótica para a Segunda Guerra Mundial, em 1944. Mas, infelizmente, o artificialismo do technicolor e da interpretação pesadamente teatral me afastam dessa que é, seguramente, outra obra-prima.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A word to the wise...

AROVEITANDO A DEIXA do meu bom amigo Luís Felipe – apesar dele achar esse pundonor de erudição oca e arrogante algo meio "brega" (nem lhe tiro a razão, nem deixo de apôr outros adjetivos negativos às minhas manias!) – começo aqui uma série explicativa das expressões obsoletas que arrolei abaixo. Espero, futuramente, ter tempo para me lembrar de outras que merecem tanta ou mais exposição:

Leito de Procusto – diz a tradição grega que existiu, nos caminhos da Ática, um sádico salteador que, não contente em roubar suas vítimas, cometia ainda a vilania de assassiná-las com macabro expediente: obrigava-as a deitarem numa espécie de leito de ferro e, sendo estas mais curtas que o leito (como seria meu caso), esticava seus membros com cordas e roldanas até arrancá-los das juntas; se mais compridas, cortava pés e cabeças que ultrapassassem as dimensões da nefasta cama. Finalmente, o herói Teseu deu cabo desse celerado, impingindo-lhe a mesma punição cruenta (gente boa esse Teseu, lugar de bandido sanguinário é mesmo debaixo da terra!). Daí que a expressão "leito de Procusto" passou à eternidade para designar situação ou fato que exige desmesurado esforço de adaptação das pessoas, ou mesmo conformação, à força, à idéia ou noção pré-estabelecida. Há quem diga que a escola é verdadeiro leito de Procusto, tolhendo as forças primevas, criativas e espontâneas do indivíduo para moldá-lo às convenções da sociedade. Taí, quanto centro acadêmico ou diretório de alunos não poderia acusar suas instituições de "procustianas" e fazer bonito nos empoeirados discursos de rebelde esquerdista sem causa?

Banquete de Lúculo – Lúcio Licínio Lúculo (c. 110-58 a.C.) foi um general romano que celebrizou-se na campanha contra Mitridates, rei do Ponto (ou Pôntida, atual região do Mar Negro). Voltando a Roma, após sua exposição aos luxos inauditos do Oriente, Lúculo virou queridinho das colunas sociais e da revista "Caras", em virtude de seus suntuosos banquetes e caríssimos prazeres. Conta-se que, em certa noite, como não tivesse nenhum convidado para seu nababesco rega-bofe, seu criado resolveu servir algo mais simples e limpinho, sem a afetação de costume. Lúculo, soberbo, então lhe disse: "Pois não sabias que Lúculo jantava na casa de Lúculo?" É isso aí, como já dizia Lúculo, o glutão exibicionista, "não vamos deixar o padrão cair!"

Fidelidade de sátrapa – essa é boa para ilustrar aos lambe-botas que sempre há quem alcance cimos inauditos em qualquer empresa humana – e, por mais que se esforcem os atuais capachos polidores de maçãs, dificilmente algum suplantará, no afã de agradar o chefinho, o velho Zópiro, sátrapa da Pérsia. Os sátrapas, como se sabe (...), eram governadores provinciais do antigo império persa. Conta-se que, durante cerco promovido por Dario I contra a Babilônia, o fidelíssimo Zópiro bolou um ardil para iludir a segurança babilônica e ingressar na cidade para, lá de dentro, autêntico cavalo de Tróia humano, abrir seus portões ao exército persa. Muito bem, mãos à obra: Zópiro cortou suas próprias orelhas e nariz e, todo choroso e ensangüentado, bateu aos portões dos crédulos babilônios, dizendo ter sido vítima da crueldade de Dario, motivo pelo qual pedia asilo naquelas bandas. Tão logo o insidioso sátrapa sorrateiro sem-vergonha pôs sua desfigurada carantonha na cidadela sitiada, pôde levar a termo seu ardil. Não sei se há registro da recompensa que Dario em seguida lhe deu, algo como diretor-geral do hospital de mutilados de guerra...

Túnica de Djanira – ó vã perfídia! Quantas histórias ouvimos de quem, por apenas querer demais a afeição do ser amado, não acaba por levar este à perdição! Se não foi a primeira, a história de Djanira, esposa do semi-deus Herácles (Hércules, para os romanos) venceu os séculos em sua trágica consumação. Certa feita, o beefcake Herácles, de célebre memória por sua gloriosa empresa diante dos Doze Trabalhos impingidos pelo pusilânime Euristeu, rei de Argos, houve por bem dar fim à miserável existência do safado centauro Nesso, cujo crime tinha sido o de tentar raptar e, bem, digamos assim, "fazer mal" à esposa do herói, a jovem e insegura Djanira. Herácles, lesto e expedito, despachou o priápico semi-eqüino com suas célebres flechas, infalíveis porque embebidas no sangue venenoso da Hidra de Lerna (cujo extermínio foi o trabalho de número dois). Antes de morrer, porém, a ardilosa e vingativa criatura disse a Djanira que ficasse com sua túnica (dele, Nesso), toda furada e manchada de sangue, como presente, afirmando que ela seria um talismã para assegurar a fidelidade do inconstante Herácles (naquele tempo, assim como hoje, pululavam as "maria-chuteiras" e aspirantes a modelo, que saltavam em cima dos atletas fortões, casados ou não) quando esta estivesse ameaçada. Pois bem, passou o tempo e Herácles, como sói acontecer, engraçou-se por uma princesa trazida em espólio de guerra. Djanira, tomada de ciúme, deu a túnica ao herói, que, tão logo a vestiu (anti-metrossexual que era -- onde já se viu sair por aí trajando túnicas furadas e ensangüentadas de um meio-cavalo morto!!!), viu-se tomado de lancinantes dores, tão poderosas que, urrando ensandecido, precipitou-se na fumegante fornalha do vulcão Etna. Acabou assim a vida do semi-deus, filho de Zeus e Alcmena, vencedor dos Doze Trabalhos: derrotado pelo próprio veneno lançado contra uma cavalgadura tarada! Essa nem Dias Gomes faria melhor!

Cão de Ulisses – não obstante sua proverbial astúcia e seu não menos celebrado amor pela bela Penélope, o pobre – e desorientado – marujo Odysseus (Ulisses, para nosotros) passou longos dez anos tentando achar o caminho de casa após a Guerra de Tróia. Ora, lembrando que a guerra em si havia durado, segundo a tradição grega, outros dez anos, eis que o marido exemplar passou um total de duas décadas longe de casa, no meio da baderna e da aventura com outros marmanjos briguentos. Nesse longo intervalo, não é de estranhar que alguém como Penélope – além de bonita, vista por todos como viúva rica – se visse cercada de pretendentes, um bando de salafrários só de olho no baú da senhora Ulisses! O filho do casal, Telêmaco, via-se incapaz de dar um rumo naquele bando de vagabundos que ocupara a casa da honrada família, comendo e bebendo às custas do ouro de Ulisses e, ainda por cima, doidos para ficar com a viúva nada alegre. Penélope, digno exemplar das fêmeas da espécie, recorreu ao célebre expediente de atrasar a resposta às propostas de matrimônio com o enrola-e-desenrola de sua tricotagem. Bom, como a jutiça tarda, mas não falha, um dia, afinal, o atrasado Ulisses veio dar nas praias de sua Ítaca natal (deve ter, afinal, resolvido parar e perguntar o caminho a algum transeunte). Lá chegando, o herói, advertido pela sempre presente divindade protetora, Atena, ficou sabendo dos ultrajes da cambada de dissolutos vagabundos, cobiçosos do que era seu, e começou a se preparar para enfrentá-los. Para tanto, disfarçou-se de humilde e inofensivo mendigo, buscando abrigo na ainda mais humilde morada do guardador de porcos Eumeu. Seguindo caminho, com Eumeu, para o solar dos Ulisses, o disfarçado herói da Ilíada e da Odisséia encontrou, alquebrado, cego, velho, doente e deitado numa montanha do próprio esterco, o cãozinho Argos, que outrora fora seu orgulhoso e valente galgo caçador (faça um esforço de credulidade para engolir que o bichinho, embora em lamentável estado, ainda vivia após vinte anos de ausência do dono), que tanto assim definhara com a ausência do mestre. Ao ouvir a voz do falso "mendigo", Argos ergueu o focinho, alegre, e, mesmo cego, abanou o rabo e lhe "sorriu latindo", para em seguida, expirar o último alento em paz e tranqüilidade. Foi, assim, o primeiro vivente a reconhecer Ulisses regressado. Depois, restou a Ulisses só despachar os desaforados pretendentes dessa para a melhor e correr para o abraço, literalmente, da bela Penélope! Quanto a Argos, celebrizou-se pela imagem de fiel cachorro, melhor amigo do homem, combalido quando afastado dele, mas sempre lesto a reconhecê-lo, não importa quanto tempo tenha se passado!

Muito bem, eis aí então o pedigree das expressões velhuscas que cito no post abaixo. Querendo a Musa que valor mais alto se alevante, prometo trazer outras em futuro próximo...

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Et in Arcadia ego...

SEM RECEIO DE PARECER pedante e resmungão (que, de fato, sou, aliás), penso no quão triste é o desaparecimento de certo verniz clássico que impede, ou dificulta, a apreciação de construtos frasais que costumavam pontilhar a escritura d’antanho. Refiro-me, especificamente, às fórmulas metafóricas extraídas de episódios míticos ou históricos do mundo greco-romano, freqüentemente elegantes e eficazes alusões a seres e fatos mais próximos de nosotros. À (possível) exceção de um ou outro exemplo mais repisado e vulgarizado ("trabalho de Sísifo", "espada de Dâmocles", "caixa de Pandora", etc), caem em ouvidos moucos um vasto número de congêneres, como "leito de Procusto", "banquete de Lúculo", "fidelidade de sátrapa", "túnica de Djanira", "cão de Ulisses", e por aí vai. Devia ser boa a época em que se escrevia isso nas escolas (como diria o Francis, "no tempo em que se escrevia nas escolas"), ou em que com tais frases se dourava um discurso e os amigos entendiam...

Pense bem, houve até quem (Voltaire, dizem) tivesse o espírito fino e mordaz de emendar o pretensioso dístico de Pico della Mirandola que serve de epígrafe a este modesto blógue — de omni re scibili (ou seja, "sobre tudo o que se pode conhecer/saber") et quibusdam aliis ("e mais algumas coisas")!

Mas, como gostavam de pontificar os monges de Eco, nossos pais eram gigantes, somos uns anões e o mundo caminha, célere e bobo, para a dissolução e o nada.