quarta-feira, dezembro 13, 2006

O melhor (e o mais frustrante) do ano

VAI-SE MAIS UM ano, e é chegada a hora de recapitular os pontos altos que passaram. Cá está minha lista:

1. Música:
No universo pop, a melhor canção do ano vai para os Scissors Sisters, com "I Don’t Feel Like Dancing", com forte concorrência do Red Hot Chili Peppers ("Tell Me Baby") e Lilly Allen ("Smile"). Os runners-up incluem ainda Snow Patrol ("Chasing Cars"), Blue October ("Hate Me"), Basement Jaxx ("Take Me Home") e Muse ("Starlight").

Na música erudita, o que comprei e gostei mais foram os dois concertos para violoncelo, de Joseph Haydn, com interpretação de Jean-Guihen Queyras e a Freiburger Barockorchester.

A decepção do ano na música foi (shock and awe!) o sempre tão bom Sting e seu "Songs from the Labyrinth". Pensei: "Hmm, Sting tocando e cantando peças "elizabetanas" em alaúde, what’s not to like?", mas estava enganado. O resultado é chato de doer, principalmente pela elocução dele, que pareceu buscar o som pós-punk do Police. Uma frustração que só vendo!

2. Literatura
Li muita coisa interessante – o début do Houellebecq ("Extension du domaine de la lutte"), Claire Castillon ("Le Grenier"), as fixações de sempre (Borges e Eco, este com "Entre a Ironia e a Mentira", aqueles com os sempre lidos "Ficciones" e o "Libro de Arena"), acabei meus contos completos do Waugh (ah!), continuei não acabando a "Histoire de ma vie", do Casanova (two years and counting...), li umas quatro novelas do Ian Fleming (bom que só vendo, que coisa mais subestimada!), o primeiro Corto Maltese, do Pratt ("A Balada do Mar Salgado", e continuo preferindo os "Escorpiões do Deserto") e, afinal, dei cabo dos "Trinta Anos Esta Noite", do Paulo Francis. Acumularam-se para o ano vindouro uma biografia do Stálin, as obras completas do Fernando Pessoa, mais Casanova e umas coisinhas mais.

Disso tudo, acho que o melhor foi o Houellebecq, mesmo. Ainda não é tão bom, cáustico como nas partículas elementares, mas bem ao ponto na crítica da mediocridade do mundo moderno.

O mais so-so, digamos, foi a dona Castillon, que não convenceu com aquele troço esquisito de Mama Perle e Papa Whisky...

3. Comes & Bebes
Direto ao ponto! Melhor surpresa gustativa do ano: chocolate quente da confeitaria Gerbeaud, de Budapeste. Denso, escuro, forte, bom demais.

Maior frustração: a Sachertorte do Demel, em Viena. Atendimento péssimo (tá, mas isso "faz parte"), caro que só e aquela decepção de um bolinho seco e sem-vergonha, onde o damasco um dia foi uma tênue lembrança. Bom, vá lá, não fui conferir a do Hotel Sacher, mas tenho aqui a forte desconfiança de que seria outra ducha de água fria (brrrr!)

4. Brinquedinhos
Top of the pops: Sony Vaio e roteador wireless.

5. Vista
Melhor: Hofburg, Viena. Pior: Estação de trem em Praga.

6. Cinema
Não vi nada. O melhor certamente será o Casino Royale (expectativa mata?). Acho que a última vez em que gastei dinheiro para ver filme ruim foi com o Capitão Sky, em 2004. Filme ruim agora, só de graça, na televisão, ou em avião, de onde não dá para fugir.

7. Outros
Revista Piauí. Não chega a ser uma General, mas dá pro gasto. O pior nessa seara dispensa comentários.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Da série "nada está tão ruim que não possa piorar!"

GISELE NA PRIMEIRA, Iggy Pop na segunda e, pelo que conta Pablito, será Ivete Sangalo na terceira...

Preciso comentar alguma coisa???? Depois disso, será o quê? Vanessa Camargo?

Façamos uma enquete, ora pois: quem você quer ver na próxima capa da RS brazuca?

terça-feira, novembro 07, 2006

Editorial wasteland...

OLHA, TEM HORAS EM que eu juro que tento não ser ranzinza, mas o mundo bestificado em que vivemos não colabora! Ah, que saudades da Bizz dos tempos do Barça (Barcinski) e do Forastieri -- e, mais ainda, que saudades da General, nossa proto-Wired (dos tempos bons, da Jane Metcalfe, que tenho o orgulho de haver conhecido pessoalmente e -- babem! -- de quem ganhei um bonezinho e uma camiseta ultra-cool com aquele acid orange on black dos tempos heróicos da Wired Ware), que primeiro nos presenteou com um William Gibson bem traduzido, de queimar as retinas...

Agora, o que é que temos??? Rolling Stone tupiniquim com Gisele Bündchen na capa! Taí, qual a diferença agora entre RS e Nova/Cosmopolitan?

Meninas e meninos, apertem os cintos: o fim só pode estar próximo!

domingo, outubro 08, 2006

Em Mohács

NESTE SÁBADO, ESTIVE nas cercanias de Mohács, no sul da Hungria, onde acompanhei amigos locais. Dia interessante, em que ajudei na colheita de vinhas para produção de vinho tinto e conheci essa interessante cidade, palco da decisiva batalha que, no século XVI, assegurou a conquista da Hungria pelos turcos.


1. Cena típica da Hungria rural: pimentões secando ao sol, para mais tarde se transformarem no condimento "nacional", a páprica.


2. Este templo, no centro de Mohács, é um memorial à batalha travada contra os turcos em 29 de agosto de 1526, quando pereceu o rei Luís II, afogado num pequeno riacho durante a fuga de seu exército derrotado. Com isso, começou o domínio de 150 anos dos otomanos sobre a Hungria.

3. Estátua de um consternado Santo Estêvão, ao lado do templo da foto acima.


4. O Danúbio em Mohács. Uns dez quilômetros rio abaixo, na direção desta foto, está a fronteira com a Croácia.

terça-feira, outubro 03, 2006

Fotos. De novo!

1. Poste enfeitado na Országház útca, Cidade Velha.



2. Na Idade Média, a Táncsics Mihály útca, no extremo nordeste da Cidade Velha, era morada de judeus. Hoje, no número 26, existe um museu que exibe lápides encontradas no sítio de uma antiga sinagoga que existiu ali no século XV.

3. Detalhe do portão de uma das mansões da Úri útca ("rua dos lordes"). As casas dessa rua foram, originalmente, construídas por aristocratas e mercadores ricos. Muitas possuem fundações medievais. Destruídas em 1686 e 1944, passaram por intensa reconstrução na década de 1950.


4. Um guerreiro magiar: detalhe de uma das esculturas da fachada do Museu de História de Budapeste, no Castelo Real.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Enquanto isso, na zona eleitoral de Budapeste...

... DEU ALCKMIN AQUI. Com 47,62% dos votos, o tucano suplantou Lula (33,3%). Cristóvam Buarque cravou 9,52% dos votos e Heloísa Helena, 7,14%. Nulos e brancos somaram 2,38%.

Pois é, só acaba quando termina...

domingo, outubro 01, 2006

E lá vão mais fotos...

ESTAVA DEVENDO UMAS fotos que tirei no último fim de semana. Aqui estão, tiradas todas na região do Castelo Real e da Cidade Velha, em Buda:


1. Fonte do Rei Matias Corvino: situada no pátio noroeste do Palácio, a fonte, criada por Alajos Stróbl em 1904, mostra o rei renascentista Matias Corvino (Mátyás Corvinus), que reinou de 1458 a 1490. A imagem do rei liderando um grupo de caçadores ilustra um poema romântico de Mihály Vörösmarty, do século XIX, sobre o encontro do rei com a pastora Ilonka, que se apaixonam, comme il faut.



2. Estátua eqüestre do Príncipe Eugênio de Savóia: criada por József Róna, em 1900, fica no pátio oposto ao do grupo do Rei Matias, acima. Comemora a vitória das forças húngaro-austríacas sobre os otomanos na batalha de Zenta (1697), que assinala a mudança na sorte das Guerras Turcas do século XVII. Com efeito, dois prisioneiros turcos são mostrados aos pés do cavalo principesco (um apenas aparece na minha foto). Ao fundo, a cúpula neoclássica de Alajos Hauszmann, construída para substituir o domo neobarroco destroçado no embate entre os exércitos nazista e soviético, em 1944.


3. A grande ave Turul, na entrada do Palácio: criada para assinalar o milênio da conquista magiar do atual território húngaro, em 1896, essa estátua representa a mítica ave de rapina que conduziu os guerreiros magiares até as planícies do Danúbio.


4. Palácio Sándor: localizado na praça Szent György, na Cidade Velha, foi construído pelo Conde Vincent Sándor, em 1806, com projeto dos arquitetos Mihály Pollack e Johann Aman. Atualmente, é a residência do Presidente da República da Hungria. Na fachada oeste, abaixo da inscrição com a data, está o baixo-relevo dos deuses do Olimpo, obra dos escultores Richárd Török, Miklós Melocco e Tamás Körössényi.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Budapest by Night

QUE SE ACALMEM os mais afoitos! Ao contrário do que o título deste post possa fazer pensar, não se trata dos recônditos do bas-fond magiar, mas sim dos cartões postais da capital húngara sob feérica iluminação noturna!


1. Castelo Real: vista do pátio noroeste, com a fonte do Rei Matias Corvino, à direita, e o domo, ao centro.


2. Ponte Széchenyi (Chain Bridge). À distância, vêem-se a cúpula e as torres da Basílica de Santo Estêvão.


3. Bastião dos Pescadores. Projetado por Frigyes Schulek, em 1895, serve como mirante do alto da Cidade Velha, na região do Palácio Real. As estruturas cônicas fazem referência às tendas dos nômades magiares.


4. Palácio Real: Porta dos Leões. Os leões foram esculpidos por János Fadrusz, em 1901.


5. Igreja Matias. a Igreja de Nossa Senhora foi construída nesse local da Cidade Velha, entre os séculos XIII e XV, mas foi no reinado de Matias Corvino (1458-1490) que ela foi expandida e adornada. Muitos detalhes originais se perderam quando os turcos otomanos a transformaram em sua Grande Mesquita, em 1541. Durante a liberação de Buda, no século XVII, ela foi quase que inteiramente destruída. Posteriormente, frades franciscanos a reconstruíram em estilo barroco. A igreja foi novamente destruída, em 1723, e posteriormente reconstruída por Frigyes Schulek, em 1873-96, em estilo neogótico, aqui presente.

Um pequeno interlúdio

DEIXANDO UM POUCO de lado as notícias e imagens magiares, leio no blógue de Pierre Assouline (v. aí nos links, ao lado) novas sobre a estréia do filme baseado no livro O Perfume, de Patrick Süsskind. Notícia a se comemorar, sem dúvida! Os mais jovens podem não se lembrar, mas o romance causou espécie em seu lançamento, na segunda metade dos anos 80. De fato, o livro é genial! Como bem disse Assouline, o sucesso foi excepcional (15 milhões de exemplares vendidos, vertido para quarenta e duas línguas), "ce qui est exceptionnel pour un roman de cette facture et de cette ambition". Nesses tristes tempos em que as livrarias só parecem soltar os Dan Browns e Paulos Coelhos aos borbotões, que saudades de livros assim!

O Perfume [Das Parfum, Alemanha, 2006]. Produção de Bernard Eichinger. Direção de Tom Tykwer. Elenco: Ben Whishaw, Dustin Hoffmann, Alan Rickman (yes!), Sara Forestier e John Hurt (fazendo a narração, yes!).

quinta-feira, setembro 21, 2006

Mais notícias de Budapeste

A HUNGRIA COMEÇOU a semana tomada pela incerteza política, com manifestantes pedindo a cabeça do Primeiro-Ministro, Ferenc Gyurcsány, após a imprensa ter vazado uma gravação de reunião interna de seu Partido Socialista (MSzP), ocorrida em maio, na qual o premiê, valendo-se dos mais escabrosos palavrões do idioma magiar, acusa seus correligionários de enganar o povo com "mentiras ditas noite e dia". De lá para cá, skinheads mal-encarados atacaram a sede da TV estatal, incendiaram carros, lutaram contra a polícia de choque e o saldo, até o momento, é de duzentas pessoas presas e outras tantas feridas (em sua maioria, policiais).

De qualquer modo, no fim-de-semana, a capital vivia dias idílicos, de céu azul e centenas de turistas no centro velho. Sei que vou desapontar o caríssimo Luís, mas, como tenho queridas esposa e filha para criar, deixei de lado os jatos de água e as bombas de gás lacrimogêneo e, agruras políticas à parte, vai aqui meu registro fotográfico da bela Budapeste:

1. As águas do Danúbio cortam a cidade em duas metades. Nesta foto, o Palácio Real dos Habsburgos, reconstruído após a Segunda Guerra Mundial, domina a paisagem do topo de sua colina, em Buda.

2. A ponte Erzsébet (Sissi), vista do mirante da colina Géllert. Do outro lado, Peste.

3. Ponte da Liberdade (Szabadság Híd), originalmente Francisco José, inaugurada em 1899.


4. O celebrado hotel Géllert, com suas cúpulas de estilo otomano.

Aparentemente, não consigo carregar mais imagens neste único post. Colocarei mais em breve!

sexta-feira, setembro 15, 2006

Imagens de Budapeste

1. Praça dos Heróis, importante monumento cívico à história magiar, localizado em Peste.



2. Alkotás (pronuncia-se "Olkotásh") Point, moderno prédio de escritórios onde está instalada a Embaixada do Brasil em Budapeste, no número 50 da Alkotás útca (pronuncia-se "útso", rua).


3. Meu hotel, o simpático Gold Hotel, no número 14 da Hegyalja útca, em Buda.


4. Vista da janela do meu quarto, para a Berényi út.


5. Arquitetura imperial: esse prédio, também na Hegyalja, traz a data de 1909 na fachada. Ou seja, construído ainda no reinado do Francisco José, do Império Austro-Húngaro.

Por enquanto é só, pessoal! Neste fim-de-semana, vou à caça das fotos verdadeiramente espetaculares!

quarta-feira, setembro 13, 2006

Notícias da Panônia

DESDE O ÚLTIMO DOMINGO, por felizes razões profissionais, estou aqui em Budapeste, capital da Hungria, região que integrava a antiga Panônia dos romanos. Por enquanto, as exigências do trabalho impediram que me aventurasse na região central, mais antiga e interessante da cidade, mas prometo que, neste fim-de-semana, volto de lá com fotos. Até então, meu roteiro se resumiu a uma caminhadinha de quinze minutos entre meu hotel e a Embaixada do Brasil.

Para rechear o post, porém, vou iluminando quem se interessar com dados desse país interessantíssimo que é a pequena e brava Hungria. No coração da Europa Central, cercados de povos eslavos, os húngaros são grupo à parte, descendente dos magiares que aqui se estabeleceram por volta do ano 896 d.C., liderados pelo chefe tribal Árpád, fundador de dinastia que persistiu até 1301. Não são, portanto, eslavos, mas "fino-úgricos". Os fino-úgricos, conforme atestam pesquisas bio-históricas e lingüísticas, originaram-se para lá dos Montes Urais, na Ásia Central, por volta do segundo milênio antes de Cristo. Entre 1000 e 500 a.C., os magiares se separaram da família, que já havia individualizado o povo que, mais tarde, daria origem ao idioma finlandês, e passaram a tratar das próprias migrações. Assim, sucessivamente, vieram para o lado de "cá" dos Urais (de V a.C. a IV d.C.), para o Cáucaso e a margem norte do Mar Negro (de 600 a 750 de nossa Era), para o leste dos Cárpatos e, finalmente, para a vasta planície (a puszta húngara) no século IX. Nesse ponto, levavam uma vida de pilhagens e ataques, como seus parentes hunos, ameaçando regiões do Império Romano-Germânico, da França e até mesmo dos Pirineus! Tal era sua fama como agentes de destruição que uma famosa oração, datada do final do período das grandes migrações (X a XI d.C.) suplicava: "Senhor, livrai-nos das espadas dos vikings e das flechas dos húngaros".

Essa ascendência fino-úgrica faz do húngaro um idioma singularíssimo, difícil e único. A longa separação dos ramos da família fez com que o húngaro e o finlandês se desenvolvessem individualmente, o que torna uma língua incompreensível para o falante de outra. Chico Buarque, no seu "Budapeste", cita que o húngaro é "a única língua que o diabo respeita". Para os exasperados falantes de línguas indo-européias, o húngaro não dá trégua, com seus palavrões como "egészségére!" (saúde!, como no brinde), "köszönöm szépen" (obrigado) e "illatszerbolt"(farmácia).

Gradativamente, porém, os belicosos húngaros se assentaram em nação mais condizente com o estado de seus vizinhos e, assim, no Natal do ano 1000, foi coroado seu primeiro rei cristão, o futuro Santo Estêvão (István I), que cristianizou toda a população e deu início à obra de expansão do império magiar. Os húngaros resistiram às tentativas de incorporação pelo Sacro Império Romano-Germânico e pelo Império Bizantino, tendo eles próprios, em contrapartida, conquistado os territórios das atuais Croácia, Sérvia, Bósnia e Bulgária, além de dominar, originalmente, o que seria mais tarde o território da Romênia.

A expansão dos turcos otomanos, porém, representou séria ameaça aos magiares; primeiro, ameaçando seus interesses na península balcânica (Sérvia e Bulgária), depois, no próprio território húngaro. Em 1541, os turcos efetivamente conquistaram a parte central da Hungria, chegando mesmo a invadir Buda, sede do reino. A Hungria independente ficou reduzida a uma porção norte-ocidental, protegida pela Áustria (com a morte do rei Luís II na Batalha de Mohács, travada contra os turcos em 1526, a nobreza húngara cedeu o poder a Ferdinando I da Áustria, da Casa dos Habsburgos), enquanto que o centro se tornava parte do Império Otomano e o leste, disputado por turcos e húngaros, formava o reino da Transilvânia.

Forças austríacas expulsaram os otomanos em 1689, dando início a um processo de gradual fusão entre a Áustria e a Hungria. A despeito da revolta conduzida pelos nobres, liderados por Ferenc Ráckózi (1703-17011), com o intuito de conferir maior autonomia política à Hungria, o processo seguiu inexorável, culminando no juramento de fidelidade dos nobres húngaros à imperatriz Maria Teresa, dos Habsburgos, em 1741. Nova revolução nacionalista eclode em 1848 (inflamada pelo poeta Sándor Petöfi) e, para não perder a irridenta Hungria, a Áustria aceita a conformação de um "Compromisso", que efetivamente cria a monarquia dual e o Império Austro-Húngaro, em 1867. Em seu auge, o Império foi dirigido por Francisco José e Elizabeth, a Sissi imortalizada nos filmes da Romy Schneider, que agradam senhorinhas românticas de idade mais avançada.

Como se sabe, o Império Austro-Húngaro implodiu nos fogos da Primeira Guerra Mundial, iniciada com o assassinato do Príncipe Herdeiro Francisco Ferdinado pelo anarquista Gavrilo Princip, da "Mão Negra", na fatídica Sarajevo. Ao fim da Guerra, o Império derrotado foi desmembrado pelo Tratado de Trianon (1920), pelo qual a Hungria perdeu dois terços do antigo território e mais da metade de sua população. Seguiu-se um período de conturbação política, com uma breve experiência comunista, liderada por Béla Kun, até a estabilização com o governo do Almirante Miklós Hórthy -- almirante de um país sem marinha e sem mar e regente de um reino sem rei (!!!). Hórthy permaneceu no poder até 1944, período em que a Hungria se aproximou da Alemanha nazista, na esperança de reaver os territórios perdidos em 1920. Ocorre aí período trágico na história do país, com a ascensão de grupos fascistas e a deportação e extermínio de cerca de 500 mil judeus húngaros.

Novamente derrotada na Segunda Guerra Mundial, a Hungria cai na órbita da União Soviética e sua Cortina de Ferro. Contudo, o país explode na revolução de 1956, liderada por estudantes, intelectuais e operários. Esmagada por tanques soviéticos, a experiência revolucionária lança ao exterior nova corrente de imigrantes húngaros. O líder do movimento revolucionário, o ex-premiê Imre Nágy foi fuzilado por tropas soviéticas em 1958, após julgamento secreto e arbitrário. Posteriormente, Nágy, tornado herói dos húngaros, mereceu discurso de desculpas do Presidente russo Bóris Iéltsin.

Segue-se um período bastante curioso, sob o governo de János Kádár, conhecido como "comunismo goulash", em que a Hungria torna-se o mais "ocidentalizado" país do Leste comunista. A partir de 1972, o país permite a entrada de investimentos estrangeiros e a propriedade privada é admitida em certo grau. Com o fim do comunismo, em 1989, a Hungria volta-se com todo ânimo para a integração nas estruturas ocidentais, tornando-se parte da OTAN, em 1999, e da União Européia, em 2004.

Essa é, em linhas bem gerais, a história da Hungria. Volto mais tarde, portanto, com imagens e observações sobre o atual estado do país.

quinta-feira, agosto 24, 2006

O Nick Hornby de todos nós

Acho bem legal as listas que o Pablo compila das suas paixões e ódios, lá no seu Pablog, qual Nick Hornby "next door". Resolvi começar as minhas:

Adoro:
Minha esposa e minha filha. Chocolate. Aliás, brigadeiro. Livros. Sonhar com livros. Livrarias. Pães, sem mais nada além da própria textura e sabor. Música barroca. Bach. Bryan Ferry. Julie London. Dias frios e chuvosos. Chá preto com leite. Inglaterra eduardiana. Evelyn Waugh. Autores ranzinzas. Paulo Francis. Filmes antigos. Meus filmes cult. Thomas Crown com o Pierce Brosnan e a René Russo. The Man who Would be King. Filmes do James Bond. Cary Grant e Grace Kelly. Paletó e gravata. Coisas bacanas, feitas com arte, mesmo que eu não possa comprá-las. Bom humor e gentileza juntos. Peter Mayle (confesso, já gostei mais do que hoje). Jorge Luis Borges. Não-ficção sobre espionagem. Sandman do Neil Gaiman. Coisas que misturam gêneros, erudição e cultura pop, folclore e história, mito e filosofia, como o Sandman do Neil Gaiman. Pizza de São Paulo. Coca-Cola normal. Bebel Gilberto. Tom Jobim. Rio de Janeiro, 1957. Qualquer coisa de 1957. Jaguar S-Type e XK 120. Kit Kat. Chocolate com menta. Histórias de exploradores. Desertos. UK. The English Patient, do Ondaatje. Frank Sinatra, fase Capitol. Canções do Cole Porter. Suplementos literários. Ler os blógues dos amigos. Andar de carro. Desenhos do Tex Avery. Tom e Jerry, Pica-pau e Pernalonga antigões.

Odeio:
Gente grossa. Blasé excessivo. Música caça-níqueis alegre e idiota. Axé "music". Ritmos baianos de verão, todos os que já vieram e os que ainda virão. Sertanejo e brega romântico dor de corno. Programas de auditório e de "artistas populares" (por que condenam o povo a só se divertir com porcaria descartável, sem inspiração e sem vergonha?). Livros de auto-ajuda e livros "da moda". Filmes idiotas. Comédias idiotas. Filmes de ação idiotas. Relativismo hipócrita. Calor demais. Velozes e Furiosos. Glamurização da bandidagem. Levar vantagem em tudo. "Sabe com quem você está falando?". Arrivismo. E o Vento Levou. Modernizações "calhordas" de desenhos como Tom e Jerry. Coisas "dumbed down". Missão Impossível 2. Armageddon. Filmes da dupla Bruckheimer/Bay. Ben Affleck. Egos inflados, cérebros atrofiados. Concretistas, tribalistas e coisas do tipo. Bolero de Ravel. Música "erudita" com vocação para picadeiro (Chapì, Rimsk-Korsakhov e essas coisas). Neonazismo e xenofobia. Jim Carrey fazendo caretas. Jogo de futebol na TV. Domingo à tarde e à noite. Avião atrasado. Multidões alegres e gritonas. Protestos "de esquerda" na Esplanada. Esse papo de que, no Brasil, todo mundo É índio, negro, mestiço, mulato, bacana, cordial, etc, etc. (além de NÃO ser verdade, viu gente?, ainda é preconceito disfarçado de coisa positiva). Funk carioca. Roupas das mulheres do funk carioca. Gírias do funk carioca que a TV quer "nacionalizar". Jornalistas rasos dando palpite sobre tudo. Gelatina com creme de leite. Britney Spears e rappers americanos que posam de bandidões. Gente que não responde a "bom dia".

Com certeza deve ter mais coisas para acrescentar nas duas listas, mas, por agora, basta.

terça-feira, agosto 22, 2006

Um diálogo ente blógues - III

OPA! LEITURA DESATENTA e equivocada! Cometi um pecado mortal!

Com efeito, bastante barrocas as imagens em cera. Confirmando a percepção de que este diálogo está me saindo um passeio pelos labirintos da memória, recordaram-me o querido Augusto dos Anjos e seu "a desarrumação dos intestinos assombra. Vêde-a!", verso lapidar do "Monólogo de uma Sombra".

Aliás, falando em assepsia barroca, li, no livro do André Senet, que item obrigatório às aulas de anatomia do período eram fatias de limão ou laranja, usadas para mascarar odores nauseabundos. Será que isso ainda existe nas academias?

E, de fato, "Restoration" comete um grande pecado, de que Robert Downey Jr. é mais o veículo do que a causa: escorrega feio no melodrama em suas porções finais. Mas não me lembro muito, pois só vi o filme uma vez, no já longínquo anno Domini de 1995. Coisas do século passado, como vêem...

Lembrei também dos libelos contra o corpo e a matéria nos monges de Eco. Creio que Ubertino era o porta-voz dessa corrente ascética-espiritual, estou certo?

Agora, Cid, partamos desses senderos que bifurcam dos labirintos da memória e passemos aos passeios nos bosques da ficção! É seu dever botar a história do Falópio no papel!

(Pronto, lembrei agora do "exercício literário" que o narrador de "Bufo & Spallanzani" aplica aos hóspedes da pousada do Pico do Gavião. Quem não leu esse livro maravilhoso, já está perdendo tempo!)

Um diálogo entre blógues - II

CONTINUANDO À TODO vapor com nosso Interblog Dialogue Initiative Operating Template (I.D.I.O.T.), devo admitir que acho estranha a associação do Marcelo entre "medicina" barroca e assepsia. O conceito, para mim, conjura mais imagens que completam as belas pranchas do De Humani Corporis Fabrica (olha o Vesálio aí, gente!) com bizarrices como o orangotango dissecado, que mestre Gaiman tão bem coloca no seu Brief Lives. Lembra também outra coisa que mencionei ao Cid quando conversamos sobre o Falópio: dentre as minhas mais belas recordações de infância e adolescência estão as várias tardes lendo os volumes da coleção "Descoberta do Mundo", da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte (ainda existe?), adquiridos por meu pai. Fazia parte da série de doze livros um fascinante volume, de André Senet, sobre o desenvolvimento histórico da medicina e do conhecimento do corpo humano nas heróicas fases da Antigüidade a Pasteur. O livro se chamava "O Homem descobre seu corpo", que fazia excelente par com "O Homem contra os micróbios" -- este, conto de terror sobre a batalha inglória contra nossos microscópicos co-condôminos do planeta, com escaramuças e grandes confrontos como a Peste Negra do século XIV. Havia lá no livrinho o aterrador panorama da doença sendo importada, dos confins da Ásia, para os centros mercantis da Europa, prenunciando a grande mortandade que assolou o continente.

Daí, aos saltos que dá a memória, lembro do belo filme "Restoration" [EUA/Reino Unido. 1995], com Robert Downey Jr. e Sam Neill, e suas visões da Inglaterra pós-cromwelliana assolada pela peste, com doutores embuçados naqueles bizarros capuzes ornitoformes, onde, creio, colocavam-se esponjas embebidas em vinagre, para matar os mortíferos "esporos" da doença, posto que se acreditava no contágio pelo ar. Por isso, a cena dos nobres envoltos em espessos vapores de incenso, tentando, inutilmente, purificar os eflúvios da pestilência.

Um diálogo entre blógues

O CARÍSSIMO AMIGO Marcelo Cid, no seu blógue, coloca post deveras interessante sobre um argumento sonhado de uma história com o anatomista Falópio (1523-1562), aquele da trompa homônima. À parte os imediatos e também interessantíssimos comentários que se possam tecer (e já devidamente feitos pessoalmente) sobre os topos dos livros sonhados, das bibliotecas de sonhos, dos livros não-escritos, escritura labirintina e borgeana, etc, sobre a incrível potencialidade do argumento como novela, roteiro cinematográfico, et caterva, e sobre as ilações com o excelente Bufo & Spallanzani, do Rubem Fonseca (não vi o filme, mas já digo que o livro está entre meus preferidos, mais um crédito à minha excelentíssima professora de português do colégio, a mestra e mentora Cláudia Lukianchuki, provando que se lia, e bem, nas escolas d’antanho), de tema semelhante, o que quero comentar agora, espero que inaugurando uma forma de diálogo com o amigo e autor, são as curiosas peculiaridades da divisão temporal ("cronomástica"???) adotada por ele naquele post.

Sim, Renascimento e período Barroco. É natural, como ensinam as escolas, que o primeiro seja, de facto e de jure, categoria temporal precisa para definir o tempo histórico – credencial conquistada pelo muito de ruptura, inovação, particularidade e influência que o período trouxe ao gênero humano em todos os campos (história, sociedade, ciência, arte, filosofia, e o que mais se possa pensar). Deixemo-lo, então, de lado, com o Falópio que aí cabe muito bem. Agora, é o segundo que me parece curioso. Sim, porque o termo "barroco" não implica, necessariamente, uma constelação de idéias tão vasta e precisa como o Renascimento. Claro, há que se falar em barroco na música, na pintura, na arquitetura, mas não é próprio falar numa ciência barroca (seria isso um oxímoro?), numa filosofia barroca, numa sociedade barroca e congêneres.

Afinal, no próprio domínio da arte, que lhe é próprio, o Barroco se presta a subdivisões e fases – maneirismo, rococó – que já demonstram (quod erat demonstrandum) que seu poder sobre o tempo histórico é menos fulcral, menos coercivo que o do Renascimento. Daí que se possa referir, ao mesmo recorte cronológico, com maior ou menor ênfase em períodos específicos, com uma pluralidade de termos, o que abarca o Século das Luzes, o Iluminismo, a Idade Moderna, o período de Luís XIV, o Antigo Regime, o Oitocentos, num campo mais filosófico-político, ou precisar aqui e acolá, seus muitos notáveis nas artes e nas ciências: Canova, Bach, Vesálio, Gongora, Watteau e Bernini seriam, então, apenas alguns, numa vasta lista que se presta a nomear os sacolejantes anos dos séculos XVII e XVIII.

Claro que não quero, com isso, panfletar contra a escolha do grande Marcelo Cid (já me apresso a explicar, antes que seja mal interpretado por leitor menos hábil), acertada como todas as outras, mas apenas discorrer sobre as variadas facetas desse período que acho um dos mais fascinantes da história ocidental. Claro também que isso abre portas para (espero que logo mais) tratar de uma das mais interessantes personalidades e obras do período: Giacomo Girolamo Casanova, o veneziano, cuja obra (sua vida) é dos relatos mais ricos, coloridos, interessantes, variados e incríveis de que se tem notícia.

Está começado o diálogo, eia pois. Que continue!

quarta-feira, julho 12, 2006

E pra não dizer que não falei das flores...

OL' BLUE EYES! Especialmente na fase da Capitol (1954-1962), com Nelson Riddle à frente da orquestra. A gente escuta e pensa que a vida nunca foi tão rósea, leve e cheia de graça como naqueles poucos anos.

Volumes foram e continuarão sendo escritos sobre Sinatra -- sobre o fraseado impecável, a vida tumultuada, a "alusão" Johnny Fontaine, o renascimento espetacular, no cinema, com From Here to Eternity, a presidência do "Rat Pack" et al. Mas é ali, nas canções daquele período, que o gênio do homem se mostra com maior vigor.

Minha preferida? Too close for comfort, 1959.

terça-feira, julho 11, 2006

Conhece-te a ti mesmo

RELENDO AS ÚLTIMAS postagens, acho que o título -- ou, pelo menos, o dístico -- deste blógue deva ser mudado para algo como "resmungos acérbicos d'um velho pedante". Hummm, será que alguém, além de mim, se interessaria por título tão saboroso?

De sapos e príncipes

O SER HUMANO (aham!), quando quer, é mesmo um bicho muito esquisito. O jornalista Reinaldo Azevedo (que, sorry, não é o esquisito a quem me refiro e cujo blógue segue arrolado aí nos links, para me facilitar o prazer de lê-lo todas as manhãs) encerrou, no mês passado, as atividades do veículo que o tornou conhecido, admirado e execrado neste país: a revista "Primeira Leitura" e o site homólogo. O que quero comentar é que, dentre as muitas mensagens de apoio e opróbrio recebidas por ele, particularmente após entrevista explicativa ao Obervatório da Imprensa, uma particularmente chamou minha atenção, por motivos que quero expor agora.

Foi nos comentários à entrevista do Observatório. Uma leitora, se bem me lembro, encasquetou de dizer que o que achava insólito no Sr. Azevedo era a aparência. E perguntava, fazendo-se atônita, se aos demais não partilhavam de seu estranhamento diante de figura, como dizia, tão asseada (or words to that effect), sempre tão limpinha e arrumadinha, referindo-se às aparições dele no programa televisivo "Roda Viva", da TV Cultura. Ademais, a cronista da imagem alheia queria, pelo que entendi, insinuar que tal aparência evidenciaria uma tal fixação anal que acomete os proto-capitalistas em tenra idade e prenuncia sua desumana avareza, ou alguma outra platitude freudina desse quilate.

O tempora, o mores! Nos meus verdes anos, certamente fruto de uma era mais bárbara, rasa e menos iluminada dos pre-hominídeos -- e, portanto, ridícula aos olhos blasés dessa malta de coevos --, conceitos como asseio, educação e urbanidade eram coisas que aprendíamos lá na pré-escola, junto com as primeiras letras, como valores que, em certa medida, go hand-in-hand together, não como signos de vícios ou perversões. Mostravam que, não só na escola, mas também em casa, tínhamos pais e mães, mamíferos de sangue quente, que nos amavam (e faziam bolo!) e cuidavam de nós, o que nos separava de víboras e outros bichos que levam às últimas conseqüências essa weltanschauung de "cada um por si e Deus contra todos".

Alas, poor Yorick, a caravana passa e os cachorros ladram, e o mundo vai ficando mais sujo e feio, decerto como os andrajos pediculosos que essa mulher, pelo que entendo, deve querer que usemos para cobrir as vergohas, se tanto.

Será que gente assim, quando abestalhada diante da graça apurada (fico, para ser justo, em exemplos como o refinado, leve e gostoso savoir-vivre de um Fred Astaire ou de um Cary Grant, ou seja, no gênero mais "terreno" da espécie; afinal, seria jogar baixo lançar nomes de fêmeas, já que, "iconicamente", a mulher alça vôos infinitamente mais altos de recompensa estética, tais quais, vá lá, não resisto, uma Audrey Hepburn parafraseando a Vitória da Samotrácia), sente-se meio morlock, sapo nauseabundo, e acha feio aquilo que não é espelho? Claro que não quero, com isso, comparar o jornalista com esses exemplos injustos (bidu!), mas refiro-me, exclusivamente, à questão dos valores, ao que escolhemos como desejável. Sempre achei que era próprio do ser humano buscar superar a condição de golem, de barro animado em que o bafejo de Elohim insufla a vida, mas vejo que me engano.

Lembro-me daquele instante belo d'O Alfaiate do Panamá, do LeCarré, em que o dito diz à esposa que ela o faz querer ser a better person (or words to that effect). Pelo visto, há quem já ache que nos afastamos demais da caverna.

Eros e a Civilização

ESQUECI DE FALAR, no post aí de baixo, a propósito de Go Slow, uma coisa interessantíssima: para as gerações de hoje, que acham que o mundo começou ontem e que ninguém é tão safo/cool/original/sexy/tudo-de-bom quanto eles mesmos, deve ser um baita choque ouvir essa canção destilar tanta sensualidade (no sentido correto do termo, uma vez que o sussurrar de Julie London tem uma qualidade "tátil" que não se deixa ignorar), prazer com a vida, malícia e sofisticação. Deve fazer gente perder o rumo. E isso tudo numa época em que não se entrava em cinema sem paletó e gravata!

Julie is her name

COM JULIE LONDON (1926-2000), a indústria fonográfica imaginou ter esbarrado no proverbial pote de ouro. Destacada dentre uma gloriosa estirpe de intérpretes brancas de standard/jazz norte-americano, Julie combinava um talento vocal indiscutível com uma figura de causar inveja às mais voluptuosas starlets dos alegres anos 50. Ao lado de nomes como Helen Merrill, Keely Smith, June Christy e outras dessa categoria, London era a madre superiora do pecado mora ao lado.

E o mais divertido é saber que a moça nunca entendeu o que viam nela, não se achava lá dona desse talento vocal/escultural todo e, no fim das contas, quis muito mais saber de virar pacata dona de casa, mãe e esposa do que arrasar quarteirões em Hollywood, isso a despeito de ter iluminado alguns filmes, e, já nos anos 70, quando o ouvido de lata de Hopper (v. Waugh, mestre e mentor) já começava sua tirania sobre as gravadoras, ter ainda feito boa figura na série "de médico" Emergency!, ao lado do marido, produtor e empresário Bobby Troup – na época, Senhor e Senhora Julie London eram "produzidos", na série, pelo ex-marido de Julie, Jack Webb (!).

Na canção, Julie era como aquelas atrizes míticas, que preenchiam todos os cantos da tela com um poder magistral inominável (não, não é só glamour) e faziam ecoar, além das meras palavras, toneladas de discursos e significados que a gente lê com alguma sensibilidade ignota, e que separam as deusas dos tolos mortais (v. Robin Goodfellow, the merry wanderer of the nignt). Claro, dirão alguns, a "mensagem" de dona London é mais unidimensional, mais voltada ao baixo-ventre. Sim, argumento, mas há aí mais arte e engenho, quando a execução é do nível dela do que se pode almejar o mercado carne de terceira que se tem hoje. Basta pegar o exemplo menos sutil de todos, Go Slow, onde Julie parte pros finalmentes e temos, sim, a canção mais explicitamente erótica da história, sem qualquer vulgaridade. Ora, ora, até o grande Porter (Cole) não resistiu à tentação do duplo sentido (como, ademais, Shakespeare) em coisas como "...Just got pinched in the As... tor bar?", então por que não Julie, com aquela voz defumada de bombshell de estourar Iwo Jima? E juntem-se mais e mais exemplos de grande interpretação, feminilidade e sofisticação, que transbordam de todo o repertório da moça, das mais batidas Cry me a River, No Moon at All, Love for Sale, Two Sleepy People, Easy Street, Around Midnight, Sophisticated Lady, A Cottage for Sale (em termos de ironia por segundo de música, um tesouro sem par!) e I’m in the Mood for Love, até pequenas pérolas como I Guess I Have to Change My Plan.

Com essa música, dentre outras, não dá para deixar de notar a influência que Julie London trouxe à Bossa-Nova, essa maravilhosa contribuição da civilização brasílica, extinta pouco depois, lá por volta de 1962, embora só creditem com freqüência o Chet Baker.

Ruy Castro nos conta que lá pelos 1970, o Maksoud tentou de tudo para trazer Julie London a estas plagas, mas a moça já estava por demais feliz na sua aldeia, o que matou o projeto. E foi até bom, porque só daria uma inveja danada de não estar lá para ouvir...

Para as massas sofridas de hoje, a quem empulham lixos infinitos, como na dieta engorda-ganso de sádicos fazendeiros franceses, creio que foi aquela excelente moça auto-podólatra, a Diana Krall, quem resgatou o prestígio de Julie London, regravando Cry me a River, em 2000 (ou mais ou menos por essa época). Interessante como duas donzelas de qualidades vocais tão díspares – London com aquele fio de voz esfumaçado, que parece sair dela como aquela longa voluta cinza que se desprende da cigarreira de Gilda, Rita Hayworth, na famosa foto, e Krall com aquela potência vocal que só julgaríamos possível nas grandes divas negras do jazz – conseguem, ambas, resultados adoráveis com a mesma música (escrita por Arthur Hamilton que, dizem-me, foi coleguinha de colégio de Julie, coitado...).

E olhem que a voz de Julie faz falta nesse meio, onde ninguém se lhe compara, apesar da plêiade de boas cantoras de registros diferentes do dela – Krall, a pianista auto-podólatra de quem já falei; Péroux, com sua voz mediúnica, em que a desencarnada Miss Holliday "baixa" com gosto e aisance; Monheit, a discípula do Ivan Lins que carrega, para meu gosto, só um pouquinho demais no açúcar. Da Norah Jones não falo, porque acho coisa de ouvido de lata, pra mim soa chato pra cachorro!

Do yourself a favour: se nunca ouviu Julie London, você está se privando de um dos grandes prazeres estéticos que ainda se podem fruir enquanto, lá fora, os hunos sitiam as muralhas da civilização.

segunda-feira, junho 26, 2006

Uma elegia

Os "trinta e nove de 2003" já não somam mais o mesmo número. Uma subtração tira do todo a graça, a leveza que ainda havia; macula a lembrança do muito que houve de bom, o que não lograra fazer o pouco que houve de ruim, nessa trajetória... Mas não é uma subtração qualquer, é perda mesmo. Sentida, dolorosa. Da pior espécie. Aquela que vem, castiga, deixa a dor, e não traz um porquê, um alento de sentido, nada. Perda, pura e simples. Do tipo que já se anuncia no espírito antes que a aurora rompa, fazendo com que o dia que nasce não tenha força de desfazer o escuro da noite, o frio e o luto.

E nós, que aqui ficamos, tateamos por um sentido que, dolorosamente, não há.

Um dia, quem sabe, a força das boas lembranças pesará na conta final mais que o golpe, seco e cruel, do choque puro. Nesse dia, nós, que aqui ficamos, poderemos enterrar o pesar com o solo leve das boas memórias.

Até lá, ficamos com a dor.

Adeus, Diógenes, caro e gentil amigo. Que a paz, onde estiver, o acolha com carinho.

No mais, o silêncio...

Ele voltou!

E espero que venha muito bem carregado daquela qualidade admirável, a acídia.

sexta-feira, maio 26, 2006

Efeméride

E O "LABIRINTO DAS Letras" chegou a seu primeiro aniversário. Não logrou -- for better or worse -- o "nenhum dia sem linha", mas segue caminhando, como quem não quer nada, figurativa ou literalmente falando.

terça-feira, maio 09, 2006

Interlúdio

PASSEANDO HOJE PELOS arquivos do blog do genialíssimo Neil Gaiman, esbarrei nesta entrada lapidar:

i suspect that Venice is full of ghosts. Not of Venetians, but of all the
visitors who came, and fell in love with the place, and promised themselves
they'd be back, dead or alive.
-- Neil Gaiman, Arquivos do "American Gods Journal", 21 de setembro de 2001.


Pois é. Esse é o homem. Um dos maiores escritores da atualidade, no less.

De quebra, ainda encontramos, no mesmo texto, a origem do episódio do camelô desmascarado no episódio da Morte ("Death and Venice"), em "Endless Nights".

quinta-feira, maio 04, 2006

Schadenfreude

SEI QUE CORRO o risco de parecer monomaníaco, chato ou simplesmente "sem assunto", mas como meu público leitor se resume a dois ou três amigos próximos (aha!, nisso posso me vangloriar do meu elitismo, pois possuo um público mais seleto e rarefeito do que os "quatro ou cinco medievalistas e talvez um ou dois cardeais" que Eco imaginava como o público ideal que acolheria seu "O Nome da Rosa"!!!), posso ainda discorrer sobre mais um assuntozinho relacionado ao tema dos posts precedentes:

Leio, no site do Guardian Unlimited, interessante artigo intitulado "Sadness and Glee at Harvard Writer's Fall" (ver aqui), em que uma colega de escola da autora de nome complicado lamenta (reluto a pensar que com esnobismo, para não cair em preconceitos ou chavões de escritura) o espírito de Schadenfreude do mundo, consubstanciado no deleite que alguns colegas de universidade sentiram ao saber da denúncia de plágio.

Schadenfreude, como sabemos, é o epíteto high brow do tradicinal ditame "pimenta nos olhos (...) dos outros é refresco". [Digressão: quantas bobagens ditas aqui e acolá não pareceriam profundas e epifânicas se substituídas por longos palavrões de aglutinante germanismo! A seu modo, sou mais partidário desses palavrões do que, na mesma linha, de construtos hifenizados como "estar-no-mundo" ou "ler-o-mundo", que, para mim, soam patéticos. Daí, lembro-me do divertidíssimo post sobre a crítica do Mencken ao obscurantismo dos metafísicos e, pensando que o Francis acharia tudo isso coisa de "pseudo", deixo essa conversa pra lá). Só que, no caso em questão, como a teutônica e psicanalítica expressão vem mascarar uma invertebrada posição de isenção e "justiça" que nada mais é do que dourar a pílula da realidade (não mais azul ou vermelha, mas doirada, gilt, e ilusória como placebo de farinha de trigo), vejo nela a cara do inimigo (a ser demascarado, dentre outros assuntos, nos futuros posts, aqueles que mencionei ao final do artigo abaixo): namely, a correção política spineless, inócua, inodora e insípida!

Como não se cansa de repetir o Reinaldo Azevedo, que leio com avidez e fraternidade d'alma, o mal do mundo é que o ser humano virou criança mimada, que a muleta da psicanálise (enquanto máscara socialmente aceitável do egoísmo mais odioso e chão, como quer Houellebecq -- aliás também assunto de futuro post, já no forno) vem pegar pela mão e eximir da responsabilidade do "ser-adulto-no-mundo" (risos). Papini já prenunciava no "Gog" (louvado seja esse livro, mil vezes!), lá na primeira metade do século XX: puericracia! Dentre outras coisas, puericracia dá nisso. Cada vez mais nos parecemos com os elói da "Máquina do Tempo": jovens, belos e bobos, até que, das trevas do subterrâneo, subam morlocks para nos devorar!

Anotai estas palavras: do pantâno da novilíngua politicamente correta nascerá a nêmesis da civilização ocidental!

Sobre livros, salsichas e o fim de todas as utopias

PASSA O TEMPO E o caso do livrinho de Ms. Kaavya Viswanathan só fica mais e mais interessante! A nova peça do puzzle agora é a participação, no affair "Opal Mehta", de uma empresa atuante no segmento de "book packaging" chamada Alloy Enterteinment.

O gentil leitor, como a gigantesca maioria da humanidade, creio, ainda nutre a idéia de que livros -- e, em especial, romances e demais formatos do que se chama "Literatura", com capital L -- nascem do talento e dedicação do que chamamos "autores"? Pensa, talvez, que esses autores são seres dotados de singular conhecimento, vivência, sensibilidade, quiçá genialidade ou originalidade? Que, na maioria das vezes, o ato da escrita é uma experiência solitária, cujos protagonistas são o tal do autor, suas emoções, medos, esperanças e uma folha de papel em branco? Papel esse que deve ser preenchido com engenho e arte, com sangue, suor e lágrimas (ou com outro fluido qualquer que denote o ato criativo, ou destrutivo, do Ser Humano)?

Tsc, tsc, caro leitor -- think again!

Essa romântica imagem do escritor, febril na sua torre de marfim (onde o beneditino lavra, longe do turbilhão estéril da rua) pode até ter existido nalgum mítico rincão pré-Revolução Industrial, ou em torno de algum excêntrico masoquista do estranho e distante século XX. Pode até ter sido a realidade dos monges copistas de Eco; dos decadentes nobres chegados a um kiss and tell, de Laclos; ou, ainda, dos delírios etílicos de um Bukowski ou de desajustados como Miller, Hemingway, Faulkner, Parker, Waugh, Sagan ou Fonseca... Hoje, essa imagem parece conjurar uma constelação de artefatos tão anacrônicos como o fiacre, um conjunto cartola-monóculo-fraque-plastrão-e-polainas, ou loção pós-barba "Old Spice"! Sim, porque tudo isso foi substituído pela eficiência empresarial dos book packagers!

Então, caro leitor, tome essa pílula azul (ou seria a vermelha?, os detalhes agora me fogem...) e seja bem-vindo ao deserto do real! Saiba, então que, em algum momento, em fins do século XX, houve uma revolta das máquinas. As máquinas, então conhecidas como "businesspeople" perceberam que era contraproducente deixar o lucrativo negócio da Literatura nas mãos de gente ineficaz, preguiçosa, tomada por paroxismos de sensibilidade ou catalepsias movidas a ruminações intelectualóides -- então, tomaram o lugar dessa escória humana, os escritores, e começaram a produzir best sellers em ritmo industrial, com rapidez, eficiência. Just in time. On demand. In a New York minute. Porém, para não despertar o apático resto do gênero humano, aqueles que manteriam escravizados num construto de entretenimento artificial, modulado e controlado, as máquinas bolaram um simulacro daquela realidade pré-Matrix, para que a boa gente crédula não percebesse que, por trás da fachada daquela realidade virtual, o novo negócio da literatura produzia obras como antes se enchiam salsichas: mecanicamente, com restos e subprodutos reciclados e encapsulados num pacote mais ou menos deglutível. Esse maquiavélico artifício das máquinas consistia em apresentar um símile de autor, um nome, "real" ou imaginário, que transmitisse a falsa impressão de que aquele produto comercial, o livro, fora produzido não por um batalhão de executivos e redatores profissionais, mas por um bom e velho autor.

De forma mais prosaica, o negócio é o seguinte: empresas como a Alloy produzem em série, por meio de grupos de trabalho, enredos e sinopses que são, então, entregues a editores especializados ou -- vá lá! -- a jovens escritores que os transformarão em livros como os conhecemos. No segundo caso, como foi o da jovem Kaavya Viswanathan, os rendimentos (advances e percentuais de vendas) são partilhados entre o "autor" e o book packager, assim como acontece com o copyright da obra. No primeiro caso, o livro é publicado com um nome qualquer, que na verdade camufla e sintetiza o batalhão de profissionais que está por trás dele (mais ou menos como aquela história de que, em Hollywood, filmes que são renegados por seus diretores acabam saindo como sendo dirigidos por um tal Alan Smithee, cineasta de ampla e variada, conquanto modorrenta, obra).

Assim, o affair "Opal Mehta" apenas logrou expôr a ponta de um iceberg que já está aí há décadas. Apenas deu um vislumbre da Matriz, do vasto campo mecanizado de manipulação e processamento da criatividade literária.

As decorrências disso são muitas, profundas e adequadas a divagações filosóficas que acompanharão, em breve, uma série de artigos que pretendo postar aqui sobre o ethos (ou pathos) cultural-social desse doudo mundo contemporâneo. Venho matutando sobre diversos signos e signos dentro de signos que pretendo explorar, com mais tempo, e lançar a vós, parcos leitores!

quarta-feira, abril 26, 2006

Ainda sobre os fenômenos natimortos

AINDA MATUTANDO NO ASSUNTO do post anterior, e pensando nos vários casos similares ocorridos nos tempos recentes, penso se não está em curso uma síndrome de Werther entre jovens escritores! Especialmente nesse caso, em que -- como observou o Cid em seu comentário (e como pode ser observado pela matérioa do Globe) -- houve, indubitavelmente, o uso do expediente "copy and paste"...

Assim, trazendo cá comigo as imorredouras palavras de Mestre Morrissey,

If you must write prose and poem
The words you use should be your own
Don't plagiarise or take on loan
-- There's always someone, somewhere,
With a big nose, who knows
Who trips you up and laughs
When you fall.
Who'll trip you up and laugh
When you fall...

Penso: Pois é, que coisa é essa? Como imaginar que alguém, em algum lugar, não descobriria -- mais rápido do que você consegue dizer "supercalifragilisticespialidoso" -- o embuste? Hein? Hein?

Olha, ou há aí uma jogada de marketing muito amalucada, ou uma perversão auto-destrutiva ainda inominada que renderia uma boa história!

terça-feira, abril 25, 2006

Ars brevis, ou da efemeridade daqueles proverbiais quinze minutos no spotlight

EU QUE PASSO boa parte de minhas horas de vigília matutando -- seja ativamente, seja em modo background -- como produzir the next great timeless literary masterpiece do Cânone Ocidental(*), não deixo de registrar (com que sentimentos?) o espasmódico début flamígero de novos autores que parecem já, de prima, ter baixado um natural no chemin de fer... Tal qual o caso de Kaavya Viswanathan e seu "How Opal Mehta Got Kissed, Got Wild and Got a Life", sucesso de crítica apontado por Pierre Assouline no seu blog, La république des livres (taí na lista de links ao lado), que não só estreou com o maior advance pago a autor de tão tenra idade, mas também com o nada desprezível mérito de ter sido escolhido para adaptação às telas por Steven Spielberg (!). Eia pois que a efemeridade dos fenômenos de nossos tempos vem já cobrar seu quinhão da moçoila, rainha por um dia (como a chama Assouline no blog, hoje), na forma do mais tenebroso pecado mortal do mundo acadêmico-literário, a besta-fera da "p word", o acônito do escritor contemporâneo, a tal da suspeita de plagiarism! No caso, conforme apontado pelo The Boston Globe, suspeita bastante fundamentada.

É isso aí, se fosse fácil, não teria graça. E, ainda mais porque o tempo passa, e como já se disse por aí, não há nada de novo sob o sol...

(*) Nulum die sine linea, diziam os romanos. Será que conta ponto ficar pensando nas linhas que poderiam ter sido escritas?, penso eu

quinta-feira, abril 13, 2006

quinta-feira, março 30, 2006

Seu Marcos

AGORA QUE NOSSO homem já está em órbita, vêm-me à mente dois fatos extremamente prosaicos que me fazem sentir humanamente mais próximo do Tenente-Coronel Marcos Pontes, embora jamais tenhamos trocado palavra, não obstante meu trabalho tangenciar, por vezes, temas políticos relacionados a sua viagem espacial: a noite em que ele estava a duas mesas de distância, no Bar Brasília, praticamente anônimo, e a menção que dele se faz em música da turma do Cocoricó, da TV Cultura, que minha filhinha adora rever pelas manhãs.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Mozart

EM "MADAME BOVARY", Flaubert escreveu:

A fala humana é como uma chaleira rachada, na qual batucamos ritmos toscos para os ursos dançarem, enquanto ansiamos por fazer uma música que derreta as estrelas.

Sei que não é nisso exatamente que o celebrado escritor estava pensando, mas sempre que penso nessa frase, lembro-me que tal música já existe. Trata-se, naturalmente, do Kyrie da Missa de Réquiem, aquele canto do cisne do Gênio de Salzburgo.

O indescritível poder da tessitura vocal dessa peça é algo completamente sobrenatural. Eu, que só pude ouvir gravações, não consigo deixar de imaginar a impressão causada por sua execução, sei lá, numa catedral, com a reverberação certa. Não seria preciso muito esforço para sentir o edifício romper sua materialidade de pedra e deixar os próprios alicerces, alçando os espaços infinitos cujo silêncio assombrava Pascal. O Kyrie do Réquiem de Mozart é mais assombroso que o Universo mesmo.

[Com pequeno atraso, fica aqui essa postagem para a efeméride mozartiana de 2006].

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Sutor, ne supra crepidam!

AINDA NA SÉRIE das anedotas histórico-mitológicas coligidas para deitar lume aos espíritos embuçados na treva que ora grassa, qual sombras tomadas às hostes de Plutão, vai esta simpática historinha sobre a necessidade de ater-se cada qual a seu quinhão de experiência ou conhecimento:

Viveu na corte de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), um célebre e talentoso pintor, de nome Apeles. Ocorre que, a despeito de sua virtuosística técnica pictórica, o bom Apeles era sujeito humilde, cioso das críticas e reparos que porventura fizessem de sua obra. Costumava, por isso, esconder-se perto dos trabalhos em exposição, a fim de bisbilhotar os comentários feitos à sua arte. Certo dia, um concidadão que vivia do ofício de sapateiro criticou, certamente com conhecimento de causa, o calçado de uma figura retratada em pintura de Apeles. De seu esconderijo, o artista ouviu a fala e houve por bem corrigir o detalhe.

Qual não foi, porém, a surpresa de Apeles ao constatar, no dia seguinte, que o tal sapateiro, vendo o trabalho refeito e, em conseqüência, julgando-se autorizado pelo reconhecimento de sua "reputada" opinião no mundo das artes, punha-se a criticar outras partes da pintura! Aí também já é demais! Apeles saltou de seu esconderijo e, certamente com o dedo em riste, passou sabão no abusado: "Sutor, ne supra crepidam!", teria dito ele (se falasse latim...) -- ou seja, "sapateiro, não vá além das sandálias!"

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

"... we band of brothers!"

DEPOIS DE UNS DOIS meses morrendo de vontade de rever a pequena obra-prima que é Henry V [Reino Unido, 1989. Direção de Kenneth Branagh], e de não encontrá-la nas locadoras brasilienses especializadas em títulos "de arte" (!), acabei caindo na tentação de comprar o DVD. Com a shakesperiana fome saciada, cumpre exaltar, neste humilde foro, as (muitas) qualidades da obra!

Em primeiro lugar, a brilhante adaptação, dirigida e interpretada pelo então jovem e quase rechonchudo Branagh, não bastando em sua própria excelência, ainda teve a honra de resgatar o interesse do público pela cinematografia inspirada no bardo de Stratford-upon-Avon. Depois desse filme, vieram à tela prateada interpretações de maior ou menor valor, com variados graus de ousadia ou de purismo canônico - incluindo-se Much Ado About Nothing [Reino Unido/EUA, 1993. Direção de Kenneth Branagh], Othello [Reino Unido/EUA, 1995. Direção de Oliver Parker], Hamlet [Reino Unido/EUA, 1996. Direção de Kenneth Branagh, dentre as várias que povoaram as telas recentemente], Looking for Richard [EUA, 1996. Direção de Al Pacino, sobre os bastidores de uma montagem de Ricardo III], um tal (céus!) de Romeo + Juliet [EUA, 1996. Direção de Baz Luhrmann], ou o mais recente The Merchant of Venice [EUA/Itália/Luxemburgo/Reino Unido, 2004. Direção de Michael Radford]. Isso sem falar (céus!) na oscarizada retratação do próprio Bill Shaxpear (como era engraçada a fluidez do idioma e da grafia de nomes na elizabetana Albion!) apresentada em Shakespeare in Love [EUA/Reino Unido, 1998. Direção de John Madden]. Todos esses filmes, e talvez mais alguns, devem sua existência à exitosa empreitada de Branagh em Henry V.

Uma das grandes sacadas do filme é a simplesmente fantástica, inesquecível e gloriosa presença de Sir Derek Jacobi como "coro"! O venerando ator coloca toda sua preciosíssima elocução do texto original já na abertura, conduzindo a imaginação do tablado teatral para os dias sombrios de mais um capítulo da Guerra dos Cem Anos, quando o jovem rei Henrique V busca fazer seus direitos ao trono de França, cujo direito lhe atesta o arrazoado genealógico e jurídico apresentado pelo Arcebispo da Cantuária, e, depois, levando o espectador para as sucessivas cenas de Southampton (a parte dos traidores, genial!), Harfleur, Agincourt e Paris. No fim, cerrando as portas que abrira na primeira cena, Jacobi (que cara de tio afável ele tem!) pondera sobre como todo aquele espetáculo de lama, suor e sangue acabaria no nada, quando após a morte do glorioso príncipe, as possessões inglesas na França foram perdidas por seus sucessores.

E, entre essas duas tomadas, Branagh conseguiu reunir um cast verdadeiramente estelar, incluindo Dame Judi Dench (como Nell Quickly), Brian Blessed (o brutamontes tio Exeter), o então pirralho e presente Batman, Chris Bale (pajem de Falstaff), Robbie Coltrane (como o próprio Falstaff), Ian Holm (tenente Fluellen), Emma Thompson (princesa Catherine) e Paul Scofield (Charles VI). Desse ninho de téspios da mais fina estirpe fluem as linhas que Shakespeare escreveu! Anoto aqui algumas das mais belas passagens:

1. Do flamígero prólogo do Coro:

O for a Muse of fire, that would ascend
The brightest heaven of invention,
A kingdom for a stage, princes to act
And monarchs to behold the swelling scene!
Then should the warlike Harry, like himself,
Assume the port of Mars; and at his heels,
Leash'd in like hounds, should famine, sword and fire
Crouch for employment. But pardon, and gentles all,
The flat unraised spirits that have dared
On this unworthy scaffold to bring forth
So great an object. Can this cock-pit hold
The vasty fields of France? or may we cram
Within this wooden O the very casques
That did affright the air at Agincourt?
O, pardon! since a crooked figure may
Attest in little place a million;
And let us, ciphers to this great accompt,
On your imaginary forces work.
Suppose within the girdle of these walls
Are now confined two mighty monarchies,
Whose high upreared and abutting fronts
The perilous narrow ocean parts asunder.
Piece out our imperfections with your thoughts;
Into a thousand parts divide on man,
And make imaginary puissance;
Think when we talk of horses, that you see them
Printing their proud hoofs i'th' receiving earth;
For 'tis your thoughts that now must deck our kings,
Carry them here and there; jumping o'er times,
Turning the accomplishment of many years
Into an hourglass -- for the which supply,
Admit me Chorus to this history;
Who Prologue-like your humble patience pray,
Gently to hear, kindly to judge, our play.


Que este vosso humilde escriba tem a ousadia de traduzir, sem os ricos paramentos do metro e da rima, como:

"Ah, por uma ígnea musa que ascendesse
Ao mais brilhante firmamento da invenção!
Um reino por um palco, príncipes para atua
E monarcas para contemplar a comovente cena!
Então poderia o beligerante Harry, digno do nome,
Assumir o porte de Marte; e a seus pés,
Como cães encilhados, iriam a fome, a espada e o fogo
Aguardar seu uso. Mas, perdoai, gentis espectadores,
As toscas almas ignaras que ousaram,
Neste indigno palco, trazer
Tão glorioso tema. Pode esta rinha comportar
Os vastos campos de França? Ou podemos nós confinar
Neste madeirame, ah!, os verdadeiros elmos
Que trouxeram pasmo ao ar de Agincourt?
Ah, perdoai! Pois pode uma canhestra figura
Representar, em pequeno espaço, uma legião;
E deixai que nós, insignificante cifra nesse grande cômputo,
Trabalhemos vossas forças da imaginação.
Imaginai que no amplexo destes muros
Estão agora confinadas duas poderosas monarquias,
Cujas frontes, soerguidas e fronteiriças,
Fende o perigoso e estreito oceano.
Desfazei nossas imperfeições com vosso pensamento;
Em mil partes dividi um único homem,
E fazei potência da imaginação;
Ao dizermos ‘cavalo’, pensai que os vêdes
Premindo na acolhedora terra seus cascos orgulhosos;
Pois é agora vosso pensamento que deve paramentar nossos reis,
E conduzi-los para cá e para lá, saltando no tempo,
E reduzindo o resultados dos muitos anos
Numa hora de ampulheta – por cujo período,
Admiti-me coro desta história;
Que, à guisa de prólogo, pede à vossa humilde paciência,
Com bonomia, ouvir; com indulgência, julgar, nossa peça!"


2. Da resposta do rei Henrique à ofensa do Delfim de França, que zomba do pleito do inglês a ducados franceses enviando a Henrique bolas de tênis, as quais julga mais apropriadas a um monarca que ele, o Delfim, julga pueril e parvo (Ato I, Cena 2, linhas 259-297):

We are glad the Dauphin is so pleasant with us;
His present and your pains we thank you for:
When we have march'd our rackets to these balls,
We will, in France, by God's grace, play a set
Shall strike his father's crown into the hazard.
Tell him he hath made a match with such a wrangler
That all the courts of France will be disturbed
With chases. And we understand him well,
How he comes o'er us with our wilder days,
Not measuring what use we made of them.
We never valued this poor seat of England;
And therefore, living hence, did give ourself
To barbarous licence; as 'tis ever common
That men are merriest when they are from home.
But tell the Dauphin I will keep my state,
Be like a king and show my sail of greatness
When I do rouse me in my throne of France:
For that I have laid by my majesty
And plodded like a man for working-days,
But I will rise there with so full a glory
That I will dazzle all the eyes of France,
Yea, strike the Dauphin blind to look on us.
And tell the pleasant prince this mock of his
Hath turn'd his balls to gun-stones; and his soul
Shall stand sore charged for the wasteful vengeance
That shall fly with them: for many a thousand widows
Shall this his mock mock out of their dear husbands;
Mock mothers from their sons, mock castles down;
And some are yet ungotten and unborn
That shall have cause to curse the Dauphin's scorn.
But this lies all within the will of God,
To whom I do appeal; and in whose name
Tell you the Dauphin I am coming on,
To venge me as I may and to put forth
My rightful hand in a well-hallow'd cause.
So get you hence in peace; and tell the Dauphin
His jest will savour but of shallow wit,
When thousands weep more than did laugh at it.
Convey them with safe conduct. -- Fare you well.


Que, mais uma vez, traduzo:

"Felizes estamos com que o Delfim seja tão amável para conosco;
Por seu presente e por vossos esforços, agradecemos!
Quando tivermos ajustado nossas raquetes a estas bolas,
Jogaremos, com a graça de Deus, uma partida em França
Que derrubará de seu pai a coroa!
Dizei a ele que buscou desafiar tal adversário
Que todas as quadras de França serão tomadas
Com nossa disputa. E que o compreendemos bem,
Como vem ele nos censurar por nossa juventude passada,
Sem fazer caso do uso que dela fizemos.
Nunca havíamos dado valor a este humilde trono da Inglaterra;
E, portanto, cá vivendo, nos entregamos
Ao bárbaro folgar; pois sói ser comum
Que sejam os homens mais alegres quando estão em casa.
Mas, dizei ao Delfim que mantenho minha palavra
E, como um rei, desfraldo minha grandeza,
Ao ascender ao trono de França.
Pois cá despi-me de majestade
E labutei como o jornaleiro,
Mas, lá, hei de erguer-me com tal glória
Que ofuscarei todos os olhares de França,
Sim, cegarei o Delfim quando este nos contemplar!
Sim, dizei ao amável príncipe que sua zombaria
Transformou estas bolas em balas de canhão; e que sua alma
Será fustigada pela pródiga vingança
Que, com elas, há de voar: pois milhares de viúvas
Essa zombaria partirá de seus maridos;
Partirá mães de seus filhos, derrubará castelos;
E muitos que ainda não nasceram
Terão motivos para maldizer o escárnio do Delfim.
Mas, tudo é como Deus quer,
E a Deus apelo, e em Seu nome,
Dizei ao Delfim que venho,
Para vingar-me como puder e para tomar
Em minha justa mão uma justa demanda.
Então, ide daqui em paz, e dizei ao Delfim
Que sua troça saberá a torpitude,
Quando milhares chorarem mais do que riu ele.
Levai-os em segurança. – Passar bem!"

3. E, ainda mais estentórea, da resposta que Exeter traz em embaixada ao rei de França (Ato II, Cena 4, linhas 99-100):

[...]
Therefore in fierce tempest is he coming,
In thunder and in earthquake, like a Jove [...]

Ou seja:

"[...]
Envolto em feroz tempestade ele vem,
Em meio a trovões e terremotos, qual um Júpiter [...]"

e, ao Delfim, traz ele, de Henrique (idem, linhas 117-126):

Scorn and defiance, slight regard, contempt;
And anything that may not misbecome
The mighty sender, doth he prize you at.
Thus says my king: an if your father's highness
Do not, in grant of all demands at large,
Sweeten the bitter mock you sent his majesty,
He'll call you to so hot an answer for it
That caves and womby vaultages of France
Shall chide your trespass and return your mock
In second accent of his ordinance.

"Escárnio e desafio, pouco caso, desprezo;
E tudo o mais que possa não destoar
Do augusto remetente, deseja ele a ti.
Assim diz o meu rei! E se Sua Alteza, o vosso pai,
Acedendo às demandas de meu rei, não
Adoçar a amarga zombaria que vós enviastes a Sua Majestade,
Ele há de dar-te tão extremada resposta por ela
Que mesmo as cavernas e os seguros abrigos de França
Hão de reprovar vossa ofensa e devolver vossa zombaria,
Em consonância com o comando de meu rei."

4. Mas atrás, da férrea sentença pronunciada contra os traidores -- Richard, Conde de Cambridge; Henry, Lorde Scrope de Masham; e o cavaleiro Sir Thomas Gray. Vale lembrar, também nesta cena, o saboroso ardil para enredar os quase regicidas nas teias de sua própria maledicência, quando se propõe a anistiar um súdito que, embriagado, criticara o rei ainda na véspera, a que os três celerados se opõem, instando o rei a não demonstrar tibieza com a clemência -- a mesma clemência que, em vão, buscam extrair dele para si mesmos quando se vêem descobertos em seu intento assassino (Ato II, Cena 2, linhas 162-178):

God quit you in his mercy. Hear your sentence.
You have conspired against our royal person,
Join'd with an enemy proclaim'd and fixed,
And from his coffers
Received the golden earnest of our death,
Wherein you would have sold your king to slaughter,
His princes and his peers to servitude,
His subjects to oppression and contempt
And his whole kingdom into desolation.
Touching our person seek we no revenge,
But we our kingdom's safety must so tender,
Whose ruin you have sought, that to her laws
We do deliver you. Get you therefore hence,
Poor miserable wretches, to your death;
The taste whereof, God of his mercy give
You patience to endure, and true repentance
Of all your dear offences. -- Bear them hence.

Ou, em bom português:

"Que Deus vos acolha em Sua piedade. Ouçam, pois, vossa sentença.
Vós haveis conspirado contra nossa real pessoa,
Aliando-se a nosso inimigo jurado,
E, de seus cofres,
Recebestes o ouro de nossa morte,
Pelo qual venderam vosso rei ao massacre,
Seus príncipes e seus pares à servidão,
Seus súditos à opressão e ao desprezo
E todo o seu reino à desolação.
De vosso crime contra nós, não buscamos vingança,
Mas, devemos, nós, cuidar tanto da segurança de nosso reino,
Cuja ruína vós procurastes, que a suas leis
Vos entregamos. Então, ide daqui,
Pobres desgraçados, para a vossa morte,
Cujo gosto, Deus vos dê, em Sua piedade,
Paciência de enfrentar, e legítimo arrependimento
De vossos crimes. – Levai-os daqui!"

5. E, finalmente, do mais decantado chamado às armas e apologia da amizade castrense já escrito pela pena de qualquer artista, que empresta seus gloriosos versos ao título deste post, proferido diante do campo de Agincourt! Nesta cena, o nobre inglês Westmorland lamenta não ter, nas hostes de Henrique, mais dez mil dos homens que, naquele mesmo dia, descansavam de seus afazeres no solo pátrio. A que Henrique responde (Ato IV, Cena 3, 18-67):

What's he that wishes so?
My cousin Westmoreland? No, my fair cousin.
If we are mark'd to die, we are enough
To do our country loss; and if to live,
The fewer men, the greater share of honour.
God's will, I pray thee, wish not one man more.
By Jove, I am not covetous for gold,
Nor care I who doth feed upon my cost;
It earnes me not if men my garments wear;
Such outward things dwell not in my desires.
But if it be a sin to covet honour,
I am the most offending soul alive.
No, faith, my coz, wish not a man from England.
God's peace, I would not lose so great an honour
As one man more, methinks, would share from me
For the best hope I have. O, do not wish one more.
Rather proclaim it presently through my host
That he which hath no stomach to this fight,
Let him depart. His passport shall be made
And crowns for convoy put into his purse.
We would not die in that man's company
That fears his fellowship to die with us.
This day is called the Feast of Crispian.
He that outlives this day and comes safe home
Will stand a tip-toe when the day is named
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day and live t'old age
Will yearly on the vigil feast his neighbours
And say 'To-morrow is Saint Crispian.'
Then will he strip his sleeve and show his scars
And say, 'These wounds I had on Crispin's day.'
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he'll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words --
Harry the king, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester --
Be in their flowing cups freshly remember'd.
This story shall the good man teach his son,
And Crispin Crispian shall ne'er go by
From this day to the ending of the world
But we in it shall be remember'd,
We few, we happy few, we band of brothers.
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne'er so vile,
This day shall gentle his condition.
And gentlemen in England now abed
Shall think themselves accursed they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin's day.

Que traduzo assim:

"Quem deseja isso?
Tu, meu primo Westmoreland? Não, bom primo!
Se estamos marcados para morrer, somos já muitos
Para fazer falta a nosso país; e, se para viver,
Quanto menos homens, maior a nossa glória!
Por Deus, peço-te: não deseje um só homem a mais!
Por Júpiter! Não sou homem de cobiçar ouro,
Nem me importo com quem come às minhas custas;
Não me amola que vistam as minhas roupas;
Tais coisas materiais não estão nos meus desejos.
Mas, se pecado for cobiçar a glória,
Então sou a mais criminosa alma vivente.
Não, meu primo, não desejai um só homem da Inglaterra.
Por Deus, eu não suportaria perder tamanha glória
Que um homem a mais, penso, tiraria de mim
Por melhor que para mim seja. Ah, não desejai um só a mais!
Ao contrário, ide e dizei à minha hoste
Que, aquele que não tiver estofo para essa luta,
Deixai-o partir. Seu salvo-conduto será expedido
E coroas para a viagem serão colocadas em sua bolsa.
Não queremos morrer na companhia daquele
Que teme morrer conosco.
Hoje é Dia de São Crispim!
Aquele que sobreviver a este dia, e retornar em segurança à casa
Erguer-se-á quando este dia for mencionado
E se exaltará ao nome de Crispim!
Aquele que viver este dia e chegar a provecta idade
Irá, todos os anos, na véspera desse dia, dar de cear a seus vizinhos
E dirá: ‘Amanhã é Dia de São Crispim’.
Ele então despirá a manga e mostrará suas cicatrizes
E dirá: "Estas feridas, tomei-as no Dia de São Crispim’.
Os velhos esquecem, mas nem tudo será esquecido,
Pois ele se lembrará, muito bem,
Dos feitos que realizou naquele dia. Então, serão nossos nomes
Familiares em sua boca como parentes próximos:
Harry, o rei; Bedford e Exeter;
Warwick e Talbot; Salisbury e Gloucester –
Serão, em meio a taças cheias, relembrados!
Esta história o bom homem ensinará a seu filho,
E o nome de São Crispim jamais será lembrado,
Deste dia até o final dos tempos,
Sem que nele sejamos relembrados,
Nós, poucos; nós, poucos e felizes; nós, bando de irmãos!
Pois aquele que hoje verter o seu sangue comigo
Será meu irmão; por mais vil que seja
Este dia há de aliviar sua condição.
E os gentis-homens que agora dormem no leito, na Inglaterra,
Julgar-se-ão amaldiçoados de não estar aqui,
E duvidarão da própria masculinidade quando alguém disser
Que lutou conosco no Dia de São Crispim!"

Claro que, além dessas, há outras cenas com o poder de gravar-se a fogo em nossos neurônios, tais como o enforcamento do velho Bardolph; as parlamentações com o digno arauto francês; a ígnea ameaça de Henrique ao povo de Harfleur; a vigília nos dois acampamentos às vésperas da batalha de Agincourt, quando Henrique, anônimo, ouve o desassossego de suas tropas e ora ao Senhor dos Exércitos pelo resultado do dia que raia; a lição de inglês da princesa Catherine, e por aí vai...

Como resultado, só confirmamos que o velho Shakespeare sabia preparar uma mistura explosiva com suas palavras de ouro! Palavras que o bom Kenneth Branagh teve o bom senso, a fineza, a ousadia e a esperteza de repetir, quase que verbatim, e com bela dicção, em seu Henry V! Claro que sempre há quem queira conduzir debate para a querela da "melhor versão" -- se essa ou a que Sir Laurence Olivier fez sob encomenda do governo britânico, como parte do esforço de mobilização patriótica para a Segunda Guerra Mundial, em 1944. Mas, infelizmente, o artificialismo do technicolor e da interpretação pesadamente teatral me afastam dessa que é, seguramente, outra obra-prima.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A word to the wise...

AROVEITANDO A DEIXA do meu bom amigo Luís Felipe – apesar dele achar esse pundonor de erudição oca e arrogante algo meio "brega" (nem lhe tiro a razão, nem deixo de apôr outros adjetivos negativos às minhas manias!) – começo aqui uma série explicativa das expressões obsoletas que arrolei abaixo. Espero, futuramente, ter tempo para me lembrar de outras que merecem tanta ou mais exposição:

Leito de Procusto – diz a tradição grega que existiu, nos caminhos da Ática, um sádico salteador que, não contente em roubar suas vítimas, cometia ainda a vilania de assassiná-las com macabro expediente: obrigava-as a deitarem numa espécie de leito de ferro e, sendo estas mais curtas que o leito (como seria meu caso), esticava seus membros com cordas e roldanas até arrancá-los das juntas; se mais compridas, cortava pés e cabeças que ultrapassassem as dimensões da nefasta cama. Finalmente, o herói Teseu deu cabo desse celerado, impingindo-lhe a mesma punição cruenta (gente boa esse Teseu, lugar de bandido sanguinário é mesmo debaixo da terra!). Daí que a expressão "leito de Procusto" passou à eternidade para designar situação ou fato que exige desmesurado esforço de adaptação das pessoas, ou mesmo conformação, à força, à idéia ou noção pré-estabelecida. Há quem diga que a escola é verdadeiro leito de Procusto, tolhendo as forças primevas, criativas e espontâneas do indivíduo para moldá-lo às convenções da sociedade. Taí, quanto centro acadêmico ou diretório de alunos não poderia acusar suas instituições de "procustianas" e fazer bonito nos empoeirados discursos de rebelde esquerdista sem causa?

Banquete de Lúculo – Lúcio Licínio Lúculo (c. 110-58 a.C.) foi um general romano que celebrizou-se na campanha contra Mitridates, rei do Ponto (ou Pôntida, atual região do Mar Negro). Voltando a Roma, após sua exposição aos luxos inauditos do Oriente, Lúculo virou queridinho das colunas sociais e da revista "Caras", em virtude de seus suntuosos banquetes e caríssimos prazeres. Conta-se que, em certa noite, como não tivesse nenhum convidado para seu nababesco rega-bofe, seu criado resolveu servir algo mais simples e limpinho, sem a afetação de costume. Lúculo, soberbo, então lhe disse: "Pois não sabias que Lúculo jantava na casa de Lúculo?" É isso aí, como já dizia Lúculo, o glutão exibicionista, "não vamos deixar o padrão cair!"

Fidelidade de sátrapa – essa é boa para ilustrar aos lambe-botas que sempre há quem alcance cimos inauditos em qualquer empresa humana – e, por mais que se esforcem os atuais capachos polidores de maçãs, dificilmente algum suplantará, no afã de agradar o chefinho, o velho Zópiro, sátrapa da Pérsia. Os sátrapas, como se sabe (...), eram governadores provinciais do antigo império persa. Conta-se que, durante cerco promovido por Dario I contra a Babilônia, o fidelíssimo Zópiro bolou um ardil para iludir a segurança babilônica e ingressar na cidade para, lá de dentro, autêntico cavalo de Tróia humano, abrir seus portões ao exército persa. Muito bem, mãos à obra: Zópiro cortou suas próprias orelhas e nariz e, todo choroso e ensangüentado, bateu aos portões dos crédulos babilônios, dizendo ter sido vítima da crueldade de Dario, motivo pelo qual pedia asilo naquelas bandas. Tão logo o insidioso sátrapa sorrateiro sem-vergonha pôs sua desfigurada carantonha na cidadela sitiada, pôde levar a termo seu ardil. Não sei se há registro da recompensa que Dario em seguida lhe deu, algo como diretor-geral do hospital de mutilados de guerra...

Túnica de Djanira – ó vã perfídia! Quantas histórias ouvimos de quem, por apenas querer demais a afeição do ser amado, não acaba por levar este à perdição! Se não foi a primeira, a história de Djanira, esposa do semi-deus Herácles (Hércules, para os romanos) venceu os séculos em sua trágica consumação. Certa feita, o beefcake Herácles, de célebre memória por sua gloriosa empresa diante dos Doze Trabalhos impingidos pelo pusilânime Euristeu, rei de Argos, houve por bem dar fim à miserável existência do safado centauro Nesso, cujo crime tinha sido o de tentar raptar e, bem, digamos assim, "fazer mal" à esposa do herói, a jovem e insegura Djanira. Herácles, lesto e expedito, despachou o priápico semi-eqüino com suas célebres flechas, infalíveis porque embebidas no sangue venenoso da Hidra de Lerna (cujo extermínio foi o trabalho de número dois). Antes de morrer, porém, a ardilosa e vingativa criatura disse a Djanira que ficasse com sua túnica (dele, Nesso), toda furada e manchada de sangue, como presente, afirmando que ela seria um talismã para assegurar a fidelidade do inconstante Herácles (naquele tempo, assim como hoje, pululavam as "maria-chuteiras" e aspirantes a modelo, que saltavam em cima dos atletas fortões, casados ou não) quando esta estivesse ameaçada. Pois bem, passou o tempo e Herácles, como sói acontecer, engraçou-se por uma princesa trazida em espólio de guerra. Djanira, tomada de ciúme, deu a túnica ao herói, que, tão logo a vestiu (anti-metrossexual que era -- onde já se viu sair por aí trajando túnicas furadas e ensangüentadas de um meio-cavalo morto!!!), viu-se tomado de lancinantes dores, tão poderosas que, urrando ensandecido, precipitou-se na fumegante fornalha do vulcão Etna. Acabou assim a vida do semi-deus, filho de Zeus e Alcmena, vencedor dos Doze Trabalhos: derrotado pelo próprio veneno lançado contra uma cavalgadura tarada! Essa nem Dias Gomes faria melhor!

Cão de Ulisses – não obstante sua proverbial astúcia e seu não menos celebrado amor pela bela Penélope, o pobre – e desorientado – marujo Odysseus (Ulisses, para nosotros) passou longos dez anos tentando achar o caminho de casa após a Guerra de Tróia. Ora, lembrando que a guerra em si havia durado, segundo a tradição grega, outros dez anos, eis que o marido exemplar passou um total de duas décadas longe de casa, no meio da baderna e da aventura com outros marmanjos briguentos. Nesse longo intervalo, não é de estranhar que alguém como Penélope – além de bonita, vista por todos como viúva rica – se visse cercada de pretendentes, um bando de salafrários só de olho no baú da senhora Ulisses! O filho do casal, Telêmaco, via-se incapaz de dar um rumo naquele bando de vagabundos que ocupara a casa da honrada família, comendo e bebendo às custas do ouro de Ulisses e, ainda por cima, doidos para ficar com a viúva nada alegre. Penélope, digno exemplar das fêmeas da espécie, recorreu ao célebre expediente de atrasar a resposta às propostas de matrimônio com o enrola-e-desenrola de sua tricotagem. Bom, como a jutiça tarda, mas não falha, um dia, afinal, o atrasado Ulisses veio dar nas praias de sua Ítaca natal (deve ter, afinal, resolvido parar e perguntar o caminho a algum transeunte). Lá chegando, o herói, advertido pela sempre presente divindade protetora, Atena, ficou sabendo dos ultrajes da cambada de dissolutos vagabundos, cobiçosos do que era seu, e começou a se preparar para enfrentá-los. Para tanto, disfarçou-se de humilde e inofensivo mendigo, buscando abrigo na ainda mais humilde morada do guardador de porcos Eumeu. Seguindo caminho, com Eumeu, para o solar dos Ulisses, o disfarçado herói da Ilíada e da Odisséia encontrou, alquebrado, cego, velho, doente e deitado numa montanha do próprio esterco, o cãozinho Argos, que outrora fora seu orgulhoso e valente galgo caçador (faça um esforço de credulidade para engolir que o bichinho, embora em lamentável estado, ainda vivia após vinte anos de ausência do dono), que tanto assim definhara com a ausência do mestre. Ao ouvir a voz do falso "mendigo", Argos ergueu o focinho, alegre, e, mesmo cego, abanou o rabo e lhe "sorriu latindo", para em seguida, expirar o último alento em paz e tranqüilidade. Foi, assim, o primeiro vivente a reconhecer Ulisses regressado. Depois, restou a Ulisses só despachar os desaforados pretendentes dessa para a melhor e correr para o abraço, literalmente, da bela Penélope! Quanto a Argos, celebrizou-se pela imagem de fiel cachorro, melhor amigo do homem, combalido quando afastado dele, mas sempre lesto a reconhecê-lo, não importa quanto tempo tenha se passado!

Muito bem, eis aí então o pedigree das expressões velhuscas que cito no post abaixo. Querendo a Musa que valor mais alto se alevante, prometo trazer outras em futuro próximo...

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Et in Arcadia ego...

SEM RECEIO DE PARECER pedante e resmungão (que, de fato, sou, aliás), penso no quão triste é o desaparecimento de certo verniz clássico que impede, ou dificulta, a apreciação de construtos frasais que costumavam pontilhar a escritura d’antanho. Refiro-me, especificamente, às fórmulas metafóricas extraídas de episódios míticos ou históricos do mundo greco-romano, freqüentemente elegantes e eficazes alusões a seres e fatos mais próximos de nosotros. À (possível) exceção de um ou outro exemplo mais repisado e vulgarizado ("trabalho de Sísifo", "espada de Dâmocles", "caixa de Pandora", etc), caem em ouvidos moucos um vasto número de congêneres, como "leito de Procusto", "banquete de Lúculo", "fidelidade de sátrapa", "túnica de Djanira", "cão de Ulisses", e por aí vai. Devia ser boa a época em que se escrevia isso nas escolas (como diria o Francis, "no tempo em que se escrevia nas escolas"), ou em que com tais frases se dourava um discurso e os amigos entendiam...

Pense bem, houve até quem (Voltaire, dizem) tivesse o espírito fino e mordaz de emendar o pretensioso dístico de Pico della Mirandola que serve de epígrafe a este modesto blógue — de omni re scibili (ou seja, "sobre tudo o que se pode conhecer/saber") et quibusdam aliis ("e mais algumas coisas")!

Mas, como gostavam de pontificar os monges de Eco, nossos pais eram gigantes, somos uns anões e o mundo caminha, célere e bobo, para a dissolução e o nada.

quarta-feira, janeiro 04, 2006

Pensamentos circulares

COMPREI, COM CERTO ATRASO, o primeiro CD da Carla Bruni, que já cobiçava há algum tempo. Biscoito fino, com um tipo de bossa francesa que deve soar como as coisas que faziam a trilha sonora de Cannes e St. Tropez nos anos 50, ou, na mesma época, naquela Costa Amalfitana onde circulavam vitelloni da mesma cepa daquele que o Jude Law interpreta no Ripley. Difícil escolher uma canção preferida no conjunto de pequenas jóias interpretadas pela ex-super modelo italiana, mas, por enquanto, fico com Le toi du moi.

Para minha filhinha, não há sonífero mais eficaz -- mas, desde os seis meses de idade, ela já havia se habituado a ninar com o sussurrinho francês de Quelq'un m'a dit, baixada em MP3 do saudoso Kazaa. Fico pensando no que vai dar essa dieta de excelente música desde a mais tenra idade!

Mas, em relação à la Bruni, paira sempre aquela inveja de comum mortal -- não bastasse ser supermodelo, linda, rica, hype, etc, etc, a moça ainda esbanja talento nas artes. Em tempo, ela é autora de música e letra de quase todas as canções do álbum! Assim também já é demais!!!