quarta-feira, junho 15, 2005

Mais Nothomb

"[...]
Si Dieu mangeait, il mangerait du sucre. Les sacrifices humains ou animaux m'ont toujours paru autant d'aberrations: quel gaspillage de sang pour un être qui aurait été si heureux d'une hécatombe de bonbons!
Il faudrait raffiner. Au sein des sucreries, il en est de plus ou moins métaphysiques. De longues recherches m'ont menée à ce constat: l'aliment théologal, c'est le chocolat.
Je pourrais multiplier les preuves scientifiques, à commencer par la théobromine qu'il est seul à contenir et dont l'étymologie est criante. Mais j'aurais un peu l'impression d'insulter le chocolat. Sa divinité me semble précéder les apologétiques.
Ne suffit-il pas d'avoir en bouche du très bon chocolat non seulement pour croire en Dieu, mais aussi pour se sentir en sa présence? Dieu, ce n'est pas le chocolat, c'est la rencontre entre le chocolat et un palais capable de l'apprécier.
"
[Biographie de la faim. Paris: Albin Michel, 2004. p. 39-40]

Curioso que os dois excertos que selecionei - ao acaso, dentre os livros da autora que me são mais caros - versem sobre as virtudes epifânicas do chocolate!

terça-feira, junho 14, 2005

Entre aspas

"J'aimerais aller au paradis pour son climat et en enfer pour ses fréquentations."
— Cardeal de Bernis (1715-1794)

Furacão Nothomb

DESDE O INÍCIO DA DÉCADA de 90, a escritora belga Amélie Nothomb (nascida no Japão, de pai diplomata) brinda um público já cativo com uma novela por ano. Invariavelmente, obras-primas que chegam com o furor de tempestades tropicais, plenas de ironia e passagens que cauterizam a memória do leitor com indeléveis imagens de loucura e lucidez, alinhavadas em períodos curtos e cortantes. Acumulam-se no currículo da prolífica escritora ficções, como Hygiène de l’assassin (1992), Mercure (1998) e Robert des noms propres (2002), dentre outros, e uma pseudo-cripto-autobiografia absolutamente impagável, que já inclui os saborosos Métaphysique des tubes (2000), com suas reflexões de 0 a 3 anos de idade (!), Biographie de la faim (2004), cobrindo o período da infância à adolescência, e Stupeur et Tremblements (1999), no qual narra seu retorno ao Japão, em idade adulta, e sua descida aos infernos no mundo corporativo nipônico. Verdadeiramente, a escritura de Nothomb é frenética (conta-se que suas gavetas guardam já quase meia dúzia de novos livros – um baú de tesouros, portanto, a se fiar somente no número de exemplares vendidos na França), o que nada lhe tira em qualidade, originalidade, provocação e – por que não? – entretenimento.

Trecho: "Ce fut alors que je naquis, à l’âge de deux ans et demi, en février 1970, dans les montagnes du Kansai, au village de Shukugawa, sous les yeux de ma grand-mère paternelle, par la grâce du chocolat blanc." [Métaphysique des tubes. Paris: Le livre de poche, 2002. 160p.]

quinta-feira, junho 02, 2005

Fora da estante

O QUE LEIO no momento:

Ministério do Silêncio: A história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula (1927-2005) [Lucas Figueiredo, Record, 2005. 591p.]. O novo livro-reportagem do autor de Morcegos Negros traz um minucioso e por vezes apavorante relato da criação e das ações do serviço secreto brasileiro, com ênfase nos bastidores da gênese do SNI (Serviço Nacional de Informações) e na montagem do aparato repressivo lançado contra o "inimigo interno" pela ditadura militar, embora ainda cubra o interessante período da redemocratização com investigações sobre o até então insuspeito papel dos serviços de informação na Nova República. Interessante documento de um período recentíssimo da história brasileira, com chagas ainda abertas e casos (ainda) mal-contados. A linguagem do autor chega a espantar por seu coloquialismo, por vezes desnecessário, e, com freqüência, ele carrega nas tintas do maniqueísmo ao defender a modéstia e altruísmo das ações dos movimentos de esquerda diante da truculência e paranóia dos militares. Tais defeitos, porém, não deslustram o impacto da obra, outro importante acréscimo à historiografia do Brasil recente.

The Decline and Fall of the Roman Empire [Edward Gibbon, Britannica Great Books, 22ed., 1978, 2v. 910 e 855p., respectivamente]. Afinal, travo contato com esse monumento da historiografia e da evolução da língua e literatura inglesas. O gigantesco trabalho de compilação de dados e sistematização conduzido por Gibbon no século XVIII ainda não encontrou quem lhe disputasse a glória de texto definitivo sobre os quase quinze séculos que vão da ascensão de Augusto à queda de Constantinopla, embora sua gênese pré-materialista lhe tenha garantido as atuais ressalvas contra as conclusões moralistas do autor. De qualquer maneira, Decline and Fall é um Olimpo de erudição e linguagem raras vezes alcançado. Paro aqui, pois ser encomiástico com Gibbon é chover no molhado.

Ghost in the Shell 2: Man-Machine Interface [Shirow Masamune, Dark Horse Manga, 2005 (versão encadernada). 312p.]. A aguardada seqüência do seminal mangá de Shirow Masamune chega com feéricos efeitos gráficos, bastante adequados à saga tecnológica que se desenrola em março de 2032. Fanáticos pela obra anterior e pelo filme homônimo de Mamoru Oshii certamente irão lamentar a ausência de personagens importantes do primeiro volume (Togusa) e o pequeno papel reservado a outros (Batou, chefe Aramaki), embora ainda permaneça lá toda a mística de things to come. De minha parte, a ressalva fica pelo tom excessivamente aventuresco e "tecnofílico". Os diálogos são uma verdadeira cortina de fumaça, composta pelo simulacro de jargão tecnothriller, longe da profundidade filosófica dos dois filmes Ghost in the Shell. De qualquer modo, valem as belas imagens "cinéticas" para acompanhar o ritmo frenético das investigações da ciborgue Motoko Aramaki (a major Motoko Kusanagi, do volume um, após sua fusão com a inteligência artificial Projeto 2501 e, agora, fragmentada numa existência extra-corpórea na rede de comunicações do século XXI). O ponto mais interessante é a idéia de que Motoko -- uma inteligência híbrida, resultante de uma fusão de seres reais e artificiais -- pode "saltar" pelos continentes em múltiplos corpos cibernéticos, meras "cascas" para o espírito (?) tecnológico da agente, ferramentas de trabalho como os veículos e safehouses que ela possui pelo mundo a fora. Não se deixe enganar pela superficialidade dos exageros mamários de Shirow ou pelo blá-blá-blá cibernético. Ghost in the Shell 2 - Man-Machine Interface, com sua pictórica representação do que será "humano" no futuro próximo, tem mais conteúdo do que a leitura transversal pode revelar.