quarta-feira, julho 12, 2006

E pra não dizer que não falei das flores...

OL' BLUE EYES! Especialmente na fase da Capitol (1954-1962), com Nelson Riddle à frente da orquestra. A gente escuta e pensa que a vida nunca foi tão rósea, leve e cheia de graça como naqueles poucos anos.

Volumes foram e continuarão sendo escritos sobre Sinatra -- sobre o fraseado impecável, a vida tumultuada, a "alusão" Johnny Fontaine, o renascimento espetacular, no cinema, com From Here to Eternity, a presidência do "Rat Pack" et al. Mas é ali, nas canções daquele período, que o gênio do homem se mostra com maior vigor.

Minha preferida? Too close for comfort, 1959.

terça-feira, julho 11, 2006

Conhece-te a ti mesmo

RELENDO AS ÚLTIMAS postagens, acho que o título -- ou, pelo menos, o dístico -- deste blógue deva ser mudado para algo como "resmungos acérbicos d'um velho pedante". Hummm, será que alguém, além de mim, se interessaria por título tão saboroso?

De sapos e príncipes

O SER HUMANO (aham!), quando quer, é mesmo um bicho muito esquisito. O jornalista Reinaldo Azevedo (que, sorry, não é o esquisito a quem me refiro e cujo blógue segue arrolado aí nos links, para me facilitar o prazer de lê-lo todas as manhãs) encerrou, no mês passado, as atividades do veículo que o tornou conhecido, admirado e execrado neste país: a revista "Primeira Leitura" e o site homólogo. O que quero comentar é que, dentre as muitas mensagens de apoio e opróbrio recebidas por ele, particularmente após entrevista explicativa ao Obervatório da Imprensa, uma particularmente chamou minha atenção, por motivos que quero expor agora.

Foi nos comentários à entrevista do Observatório. Uma leitora, se bem me lembro, encasquetou de dizer que o que achava insólito no Sr. Azevedo era a aparência. E perguntava, fazendo-se atônita, se aos demais não partilhavam de seu estranhamento diante de figura, como dizia, tão asseada (or words to that effect), sempre tão limpinha e arrumadinha, referindo-se às aparições dele no programa televisivo "Roda Viva", da TV Cultura. Ademais, a cronista da imagem alheia queria, pelo que entendi, insinuar que tal aparência evidenciaria uma tal fixação anal que acomete os proto-capitalistas em tenra idade e prenuncia sua desumana avareza, ou alguma outra platitude freudina desse quilate.

O tempora, o mores! Nos meus verdes anos, certamente fruto de uma era mais bárbara, rasa e menos iluminada dos pre-hominídeos -- e, portanto, ridícula aos olhos blasés dessa malta de coevos --, conceitos como asseio, educação e urbanidade eram coisas que aprendíamos lá na pré-escola, junto com as primeiras letras, como valores que, em certa medida, go hand-in-hand together, não como signos de vícios ou perversões. Mostravam que, não só na escola, mas também em casa, tínhamos pais e mães, mamíferos de sangue quente, que nos amavam (e faziam bolo!) e cuidavam de nós, o que nos separava de víboras e outros bichos que levam às últimas conseqüências essa weltanschauung de "cada um por si e Deus contra todos".

Alas, poor Yorick, a caravana passa e os cachorros ladram, e o mundo vai ficando mais sujo e feio, decerto como os andrajos pediculosos que essa mulher, pelo que entendo, deve querer que usemos para cobrir as vergohas, se tanto.

Será que gente assim, quando abestalhada diante da graça apurada (fico, para ser justo, em exemplos como o refinado, leve e gostoso savoir-vivre de um Fred Astaire ou de um Cary Grant, ou seja, no gênero mais "terreno" da espécie; afinal, seria jogar baixo lançar nomes de fêmeas, já que, "iconicamente", a mulher alça vôos infinitamente mais altos de recompensa estética, tais quais, vá lá, não resisto, uma Audrey Hepburn parafraseando a Vitória da Samotrácia), sente-se meio morlock, sapo nauseabundo, e acha feio aquilo que não é espelho? Claro que não quero, com isso, comparar o jornalista com esses exemplos injustos (bidu!), mas refiro-me, exclusivamente, à questão dos valores, ao que escolhemos como desejável. Sempre achei que era próprio do ser humano buscar superar a condição de golem, de barro animado em que o bafejo de Elohim insufla a vida, mas vejo que me engano.

Lembro-me daquele instante belo d'O Alfaiate do Panamá, do LeCarré, em que o dito diz à esposa que ela o faz querer ser a better person (or words to that effect). Pelo visto, há quem já ache que nos afastamos demais da caverna.

Eros e a Civilização

ESQUECI DE FALAR, no post aí de baixo, a propósito de Go Slow, uma coisa interessantíssima: para as gerações de hoje, que acham que o mundo começou ontem e que ninguém é tão safo/cool/original/sexy/tudo-de-bom quanto eles mesmos, deve ser um baita choque ouvir essa canção destilar tanta sensualidade (no sentido correto do termo, uma vez que o sussurrar de Julie London tem uma qualidade "tátil" que não se deixa ignorar), prazer com a vida, malícia e sofisticação. Deve fazer gente perder o rumo. E isso tudo numa época em que não se entrava em cinema sem paletó e gravata!

Julie is her name

COM JULIE LONDON (1926-2000), a indústria fonográfica imaginou ter esbarrado no proverbial pote de ouro. Destacada dentre uma gloriosa estirpe de intérpretes brancas de standard/jazz norte-americano, Julie combinava um talento vocal indiscutível com uma figura de causar inveja às mais voluptuosas starlets dos alegres anos 50. Ao lado de nomes como Helen Merrill, Keely Smith, June Christy e outras dessa categoria, London era a madre superiora do pecado mora ao lado.

E o mais divertido é saber que a moça nunca entendeu o que viam nela, não se achava lá dona desse talento vocal/escultural todo e, no fim das contas, quis muito mais saber de virar pacata dona de casa, mãe e esposa do que arrasar quarteirões em Hollywood, isso a despeito de ter iluminado alguns filmes, e, já nos anos 70, quando o ouvido de lata de Hopper (v. Waugh, mestre e mentor) já começava sua tirania sobre as gravadoras, ter ainda feito boa figura na série "de médico" Emergency!, ao lado do marido, produtor e empresário Bobby Troup – na época, Senhor e Senhora Julie London eram "produzidos", na série, pelo ex-marido de Julie, Jack Webb (!).

Na canção, Julie era como aquelas atrizes míticas, que preenchiam todos os cantos da tela com um poder magistral inominável (não, não é só glamour) e faziam ecoar, além das meras palavras, toneladas de discursos e significados que a gente lê com alguma sensibilidade ignota, e que separam as deusas dos tolos mortais (v. Robin Goodfellow, the merry wanderer of the nignt). Claro, dirão alguns, a "mensagem" de dona London é mais unidimensional, mais voltada ao baixo-ventre. Sim, argumento, mas há aí mais arte e engenho, quando a execução é do nível dela do que se pode almejar o mercado carne de terceira que se tem hoje. Basta pegar o exemplo menos sutil de todos, Go Slow, onde Julie parte pros finalmentes e temos, sim, a canção mais explicitamente erótica da história, sem qualquer vulgaridade. Ora, ora, até o grande Porter (Cole) não resistiu à tentação do duplo sentido (como, ademais, Shakespeare) em coisas como "...Just got pinched in the As... tor bar?", então por que não Julie, com aquela voz defumada de bombshell de estourar Iwo Jima? E juntem-se mais e mais exemplos de grande interpretação, feminilidade e sofisticação, que transbordam de todo o repertório da moça, das mais batidas Cry me a River, No Moon at All, Love for Sale, Two Sleepy People, Easy Street, Around Midnight, Sophisticated Lady, A Cottage for Sale (em termos de ironia por segundo de música, um tesouro sem par!) e I’m in the Mood for Love, até pequenas pérolas como I Guess I Have to Change My Plan.

Com essa música, dentre outras, não dá para deixar de notar a influência que Julie London trouxe à Bossa-Nova, essa maravilhosa contribuição da civilização brasílica, extinta pouco depois, lá por volta de 1962, embora só creditem com freqüência o Chet Baker.

Ruy Castro nos conta que lá pelos 1970, o Maksoud tentou de tudo para trazer Julie London a estas plagas, mas a moça já estava por demais feliz na sua aldeia, o que matou o projeto. E foi até bom, porque só daria uma inveja danada de não estar lá para ouvir...

Para as massas sofridas de hoje, a quem empulham lixos infinitos, como na dieta engorda-ganso de sádicos fazendeiros franceses, creio que foi aquela excelente moça auto-podólatra, a Diana Krall, quem resgatou o prestígio de Julie London, regravando Cry me a River, em 2000 (ou mais ou menos por essa época). Interessante como duas donzelas de qualidades vocais tão díspares – London com aquele fio de voz esfumaçado, que parece sair dela como aquela longa voluta cinza que se desprende da cigarreira de Gilda, Rita Hayworth, na famosa foto, e Krall com aquela potência vocal que só julgaríamos possível nas grandes divas negras do jazz – conseguem, ambas, resultados adoráveis com a mesma música (escrita por Arthur Hamilton que, dizem-me, foi coleguinha de colégio de Julie, coitado...).

E olhem que a voz de Julie faz falta nesse meio, onde ninguém se lhe compara, apesar da plêiade de boas cantoras de registros diferentes do dela – Krall, a pianista auto-podólatra de quem já falei; Péroux, com sua voz mediúnica, em que a desencarnada Miss Holliday "baixa" com gosto e aisance; Monheit, a discípula do Ivan Lins que carrega, para meu gosto, só um pouquinho demais no açúcar. Da Norah Jones não falo, porque acho coisa de ouvido de lata, pra mim soa chato pra cachorro!

Do yourself a favour: se nunca ouviu Julie London, você está se privando de um dos grandes prazeres estéticos que ainda se podem fruir enquanto, lá fora, os hunos sitiam as muralhas da civilização.