terça-feira, julho 11, 2006

Julie is her name

COM JULIE LONDON (1926-2000), a indústria fonográfica imaginou ter esbarrado no proverbial pote de ouro. Destacada dentre uma gloriosa estirpe de intérpretes brancas de standard/jazz norte-americano, Julie combinava um talento vocal indiscutível com uma figura de causar inveja às mais voluptuosas starlets dos alegres anos 50. Ao lado de nomes como Helen Merrill, Keely Smith, June Christy e outras dessa categoria, London era a madre superiora do pecado mora ao lado.

E o mais divertido é saber que a moça nunca entendeu o que viam nela, não se achava lá dona desse talento vocal/escultural todo e, no fim das contas, quis muito mais saber de virar pacata dona de casa, mãe e esposa do que arrasar quarteirões em Hollywood, isso a despeito de ter iluminado alguns filmes, e, já nos anos 70, quando o ouvido de lata de Hopper (v. Waugh, mestre e mentor) já começava sua tirania sobre as gravadoras, ter ainda feito boa figura na série "de médico" Emergency!, ao lado do marido, produtor e empresário Bobby Troup – na época, Senhor e Senhora Julie London eram "produzidos", na série, pelo ex-marido de Julie, Jack Webb (!).

Na canção, Julie era como aquelas atrizes míticas, que preenchiam todos os cantos da tela com um poder magistral inominável (não, não é só glamour) e faziam ecoar, além das meras palavras, toneladas de discursos e significados que a gente lê com alguma sensibilidade ignota, e que separam as deusas dos tolos mortais (v. Robin Goodfellow, the merry wanderer of the nignt). Claro, dirão alguns, a "mensagem" de dona London é mais unidimensional, mais voltada ao baixo-ventre. Sim, argumento, mas há aí mais arte e engenho, quando a execução é do nível dela do que se pode almejar o mercado carne de terceira que se tem hoje. Basta pegar o exemplo menos sutil de todos, Go Slow, onde Julie parte pros finalmentes e temos, sim, a canção mais explicitamente erótica da história, sem qualquer vulgaridade. Ora, ora, até o grande Porter (Cole) não resistiu à tentação do duplo sentido (como, ademais, Shakespeare) em coisas como "...Just got pinched in the As... tor bar?", então por que não Julie, com aquela voz defumada de bombshell de estourar Iwo Jima? E juntem-se mais e mais exemplos de grande interpretação, feminilidade e sofisticação, que transbordam de todo o repertório da moça, das mais batidas Cry me a River, No Moon at All, Love for Sale, Two Sleepy People, Easy Street, Around Midnight, Sophisticated Lady, A Cottage for Sale (em termos de ironia por segundo de música, um tesouro sem par!) e I’m in the Mood for Love, até pequenas pérolas como I Guess I Have to Change My Plan.

Com essa música, dentre outras, não dá para deixar de notar a influência que Julie London trouxe à Bossa-Nova, essa maravilhosa contribuição da civilização brasílica, extinta pouco depois, lá por volta de 1962, embora só creditem com freqüência o Chet Baker.

Ruy Castro nos conta que lá pelos 1970, o Maksoud tentou de tudo para trazer Julie London a estas plagas, mas a moça já estava por demais feliz na sua aldeia, o que matou o projeto. E foi até bom, porque só daria uma inveja danada de não estar lá para ouvir...

Para as massas sofridas de hoje, a quem empulham lixos infinitos, como na dieta engorda-ganso de sádicos fazendeiros franceses, creio que foi aquela excelente moça auto-podólatra, a Diana Krall, quem resgatou o prestígio de Julie London, regravando Cry me a River, em 2000 (ou mais ou menos por essa época). Interessante como duas donzelas de qualidades vocais tão díspares – London com aquele fio de voz esfumaçado, que parece sair dela como aquela longa voluta cinza que se desprende da cigarreira de Gilda, Rita Hayworth, na famosa foto, e Krall com aquela potência vocal que só julgaríamos possível nas grandes divas negras do jazz – conseguem, ambas, resultados adoráveis com a mesma música (escrita por Arthur Hamilton que, dizem-me, foi coleguinha de colégio de Julie, coitado...).

E olhem que a voz de Julie faz falta nesse meio, onde ninguém se lhe compara, apesar da plêiade de boas cantoras de registros diferentes do dela – Krall, a pianista auto-podólatra de quem já falei; Péroux, com sua voz mediúnica, em que a desencarnada Miss Holliday "baixa" com gosto e aisance; Monheit, a discípula do Ivan Lins que carrega, para meu gosto, só um pouquinho demais no açúcar. Da Norah Jones não falo, porque acho coisa de ouvido de lata, pra mim soa chato pra cachorro!

Do yourself a favour: se nunca ouviu Julie London, você está se privando de um dos grandes prazeres estéticos que ainda se podem fruir enquanto, lá fora, os hunos sitiam as muralhas da civilização.

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