quinta-feira, maio 04, 2006

Sobre livros, salsichas e o fim de todas as utopias

PASSA O TEMPO E o caso do livrinho de Ms. Kaavya Viswanathan só fica mais e mais interessante! A nova peça do puzzle agora é a participação, no affair "Opal Mehta", de uma empresa atuante no segmento de "book packaging" chamada Alloy Enterteinment.

O gentil leitor, como a gigantesca maioria da humanidade, creio, ainda nutre a idéia de que livros -- e, em especial, romances e demais formatos do que se chama "Literatura", com capital L -- nascem do talento e dedicação do que chamamos "autores"? Pensa, talvez, que esses autores são seres dotados de singular conhecimento, vivência, sensibilidade, quiçá genialidade ou originalidade? Que, na maioria das vezes, o ato da escrita é uma experiência solitária, cujos protagonistas são o tal do autor, suas emoções, medos, esperanças e uma folha de papel em branco? Papel esse que deve ser preenchido com engenho e arte, com sangue, suor e lágrimas (ou com outro fluido qualquer que denote o ato criativo, ou destrutivo, do Ser Humano)?

Tsc, tsc, caro leitor -- think again!

Essa romântica imagem do escritor, febril na sua torre de marfim (onde o beneditino lavra, longe do turbilhão estéril da rua) pode até ter existido nalgum mítico rincão pré-Revolução Industrial, ou em torno de algum excêntrico masoquista do estranho e distante século XX. Pode até ter sido a realidade dos monges copistas de Eco; dos decadentes nobres chegados a um kiss and tell, de Laclos; ou, ainda, dos delírios etílicos de um Bukowski ou de desajustados como Miller, Hemingway, Faulkner, Parker, Waugh, Sagan ou Fonseca... Hoje, essa imagem parece conjurar uma constelação de artefatos tão anacrônicos como o fiacre, um conjunto cartola-monóculo-fraque-plastrão-e-polainas, ou loção pós-barba "Old Spice"! Sim, porque tudo isso foi substituído pela eficiência empresarial dos book packagers!

Então, caro leitor, tome essa pílula azul (ou seria a vermelha?, os detalhes agora me fogem...) e seja bem-vindo ao deserto do real! Saiba, então que, em algum momento, em fins do século XX, houve uma revolta das máquinas. As máquinas, então conhecidas como "businesspeople" perceberam que era contraproducente deixar o lucrativo negócio da Literatura nas mãos de gente ineficaz, preguiçosa, tomada por paroxismos de sensibilidade ou catalepsias movidas a ruminações intelectualóides -- então, tomaram o lugar dessa escória humana, os escritores, e começaram a produzir best sellers em ritmo industrial, com rapidez, eficiência. Just in time. On demand. In a New York minute. Porém, para não despertar o apático resto do gênero humano, aqueles que manteriam escravizados num construto de entretenimento artificial, modulado e controlado, as máquinas bolaram um simulacro daquela realidade pré-Matrix, para que a boa gente crédula não percebesse que, por trás da fachada daquela realidade virtual, o novo negócio da literatura produzia obras como antes se enchiam salsichas: mecanicamente, com restos e subprodutos reciclados e encapsulados num pacote mais ou menos deglutível. Esse maquiavélico artifício das máquinas consistia em apresentar um símile de autor, um nome, "real" ou imaginário, que transmitisse a falsa impressão de que aquele produto comercial, o livro, fora produzido não por um batalhão de executivos e redatores profissionais, mas por um bom e velho autor.

De forma mais prosaica, o negócio é o seguinte: empresas como a Alloy produzem em série, por meio de grupos de trabalho, enredos e sinopses que são, então, entregues a editores especializados ou -- vá lá! -- a jovens escritores que os transformarão em livros como os conhecemos. No segundo caso, como foi o da jovem Kaavya Viswanathan, os rendimentos (advances e percentuais de vendas) são partilhados entre o "autor" e o book packager, assim como acontece com o copyright da obra. No primeiro caso, o livro é publicado com um nome qualquer, que na verdade camufla e sintetiza o batalhão de profissionais que está por trás dele (mais ou menos como aquela história de que, em Hollywood, filmes que são renegados por seus diretores acabam saindo como sendo dirigidos por um tal Alan Smithee, cineasta de ampla e variada, conquanto modorrenta, obra).

Assim, o affair "Opal Mehta" apenas logrou expôr a ponta de um iceberg que já está aí há décadas. Apenas deu um vislumbre da Matriz, do vasto campo mecanizado de manipulação e processamento da criatividade literária.

As decorrências disso são muitas, profundas e adequadas a divagações filosóficas que acompanharão, em breve, uma série de artigos que pretendo postar aqui sobre o ethos (ou pathos) cultural-social desse doudo mundo contemporâneo. Venho matutando sobre diversos signos e signos dentro de signos que pretendo explorar, com mais tempo, e lançar a vós, parcos leitores!

2 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, sinto-me como o Neo na cena em que lhe mostram a Realidade...

Emerson Novais Lopes disse...

Essa é a idéia, Cidón! Misture The Chosen One com sunglasses descolados, a caverna platônica, alarmismo apocalíptico do século à la ano 1000 d.C., junte umas pitadas de angústia existencialiste e agite bem. Sirva com um gelinho, para ficar mais cool.