quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A word to the wise...

AROVEITANDO A DEIXA do meu bom amigo Luís Felipe – apesar dele achar esse pundonor de erudição oca e arrogante algo meio "brega" (nem lhe tiro a razão, nem deixo de apôr outros adjetivos negativos às minhas manias!) – começo aqui uma série explicativa das expressões obsoletas que arrolei abaixo. Espero, futuramente, ter tempo para me lembrar de outras que merecem tanta ou mais exposição:

Leito de Procusto – diz a tradição grega que existiu, nos caminhos da Ática, um sádico salteador que, não contente em roubar suas vítimas, cometia ainda a vilania de assassiná-las com macabro expediente: obrigava-as a deitarem numa espécie de leito de ferro e, sendo estas mais curtas que o leito (como seria meu caso), esticava seus membros com cordas e roldanas até arrancá-los das juntas; se mais compridas, cortava pés e cabeças que ultrapassassem as dimensões da nefasta cama. Finalmente, o herói Teseu deu cabo desse celerado, impingindo-lhe a mesma punição cruenta (gente boa esse Teseu, lugar de bandido sanguinário é mesmo debaixo da terra!). Daí que a expressão "leito de Procusto" passou à eternidade para designar situação ou fato que exige desmesurado esforço de adaptação das pessoas, ou mesmo conformação, à força, à idéia ou noção pré-estabelecida. Há quem diga que a escola é verdadeiro leito de Procusto, tolhendo as forças primevas, criativas e espontâneas do indivíduo para moldá-lo às convenções da sociedade. Taí, quanto centro acadêmico ou diretório de alunos não poderia acusar suas instituições de "procustianas" e fazer bonito nos empoeirados discursos de rebelde esquerdista sem causa?

Banquete de Lúculo – Lúcio Licínio Lúculo (c. 110-58 a.C.) foi um general romano que celebrizou-se na campanha contra Mitridates, rei do Ponto (ou Pôntida, atual região do Mar Negro). Voltando a Roma, após sua exposição aos luxos inauditos do Oriente, Lúculo virou queridinho das colunas sociais e da revista "Caras", em virtude de seus suntuosos banquetes e caríssimos prazeres. Conta-se que, em certa noite, como não tivesse nenhum convidado para seu nababesco rega-bofe, seu criado resolveu servir algo mais simples e limpinho, sem a afetação de costume. Lúculo, soberbo, então lhe disse: "Pois não sabias que Lúculo jantava na casa de Lúculo?" É isso aí, como já dizia Lúculo, o glutão exibicionista, "não vamos deixar o padrão cair!"

Fidelidade de sátrapa – essa é boa para ilustrar aos lambe-botas que sempre há quem alcance cimos inauditos em qualquer empresa humana – e, por mais que se esforcem os atuais capachos polidores de maçãs, dificilmente algum suplantará, no afã de agradar o chefinho, o velho Zópiro, sátrapa da Pérsia. Os sátrapas, como se sabe (...), eram governadores provinciais do antigo império persa. Conta-se que, durante cerco promovido por Dario I contra a Babilônia, o fidelíssimo Zópiro bolou um ardil para iludir a segurança babilônica e ingressar na cidade para, lá de dentro, autêntico cavalo de Tróia humano, abrir seus portões ao exército persa. Muito bem, mãos à obra: Zópiro cortou suas próprias orelhas e nariz e, todo choroso e ensangüentado, bateu aos portões dos crédulos babilônios, dizendo ter sido vítima da crueldade de Dario, motivo pelo qual pedia asilo naquelas bandas. Tão logo o insidioso sátrapa sorrateiro sem-vergonha pôs sua desfigurada carantonha na cidadela sitiada, pôde levar a termo seu ardil. Não sei se há registro da recompensa que Dario em seguida lhe deu, algo como diretor-geral do hospital de mutilados de guerra...

Túnica de Djanira – ó vã perfídia! Quantas histórias ouvimos de quem, por apenas querer demais a afeição do ser amado, não acaba por levar este à perdição! Se não foi a primeira, a história de Djanira, esposa do semi-deus Herácles (Hércules, para os romanos) venceu os séculos em sua trágica consumação. Certa feita, o beefcake Herácles, de célebre memória por sua gloriosa empresa diante dos Doze Trabalhos impingidos pelo pusilânime Euristeu, rei de Argos, houve por bem dar fim à miserável existência do safado centauro Nesso, cujo crime tinha sido o de tentar raptar e, bem, digamos assim, "fazer mal" à esposa do herói, a jovem e insegura Djanira. Herácles, lesto e expedito, despachou o priápico semi-eqüino com suas célebres flechas, infalíveis porque embebidas no sangue venenoso da Hidra de Lerna (cujo extermínio foi o trabalho de número dois). Antes de morrer, porém, a ardilosa e vingativa criatura disse a Djanira que ficasse com sua túnica (dele, Nesso), toda furada e manchada de sangue, como presente, afirmando que ela seria um talismã para assegurar a fidelidade do inconstante Herácles (naquele tempo, assim como hoje, pululavam as "maria-chuteiras" e aspirantes a modelo, que saltavam em cima dos atletas fortões, casados ou não) quando esta estivesse ameaçada. Pois bem, passou o tempo e Herácles, como sói acontecer, engraçou-se por uma princesa trazida em espólio de guerra. Djanira, tomada de ciúme, deu a túnica ao herói, que, tão logo a vestiu (anti-metrossexual que era -- onde já se viu sair por aí trajando túnicas furadas e ensangüentadas de um meio-cavalo morto!!!), viu-se tomado de lancinantes dores, tão poderosas que, urrando ensandecido, precipitou-se na fumegante fornalha do vulcão Etna. Acabou assim a vida do semi-deus, filho de Zeus e Alcmena, vencedor dos Doze Trabalhos: derrotado pelo próprio veneno lançado contra uma cavalgadura tarada! Essa nem Dias Gomes faria melhor!

Cão de Ulisses – não obstante sua proverbial astúcia e seu não menos celebrado amor pela bela Penélope, o pobre – e desorientado – marujo Odysseus (Ulisses, para nosotros) passou longos dez anos tentando achar o caminho de casa após a Guerra de Tróia. Ora, lembrando que a guerra em si havia durado, segundo a tradição grega, outros dez anos, eis que o marido exemplar passou um total de duas décadas longe de casa, no meio da baderna e da aventura com outros marmanjos briguentos. Nesse longo intervalo, não é de estranhar que alguém como Penélope – além de bonita, vista por todos como viúva rica – se visse cercada de pretendentes, um bando de salafrários só de olho no baú da senhora Ulisses! O filho do casal, Telêmaco, via-se incapaz de dar um rumo naquele bando de vagabundos que ocupara a casa da honrada família, comendo e bebendo às custas do ouro de Ulisses e, ainda por cima, doidos para ficar com a viúva nada alegre. Penélope, digno exemplar das fêmeas da espécie, recorreu ao célebre expediente de atrasar a resposta às propostas de matrimônio com o enrola-e-desenrola de sua tricotagem. Bom, como a jutiça tarda, mas não falha, um dia, afinal, o atrasado Ulisses veio dar nas praias de sua Ítaca natal (deve ter, afinal, resolvido parar e perguntar o caminho a algum transeunte). Lá chegando, o herói, advertido pela sempre presente divindade protetora, Atena, ficou sabendo dos ultrajes da cambada de dissolutos vagabundos, cobiçosos do que era seu, e começou a se preparar para enfrentá-los. Para tanto, disfarçou-se de humilde e inofensivo mendigo, buscando abrigo na ainda mais humilde morada do guardador de porcos Eumeu. Seguindo caminho, com Eumeu, para o solar dos Ulisses, o disfarçado herói da Ilíada e da Odisséia encontrou, alquebrado, cego, velho, doente e deitado numa montanha do próprio esterco, o cãozinho Argos, que outrora fora seu orgulhoso e valente galgo caçador (faça um esforço de credulidade para engolir que o bichinho, embora em lamentável estado, ainda vivia após vinte anos de ausência do dono), que tanto assim definhara com a ausência do mestre. Ao ouvir a voz do falso "mendigo", Argos ergueu o focinho, alegre, e, mesmo cego, abanou o rabo e lhe "sorriu latindo", para em seguida, expirar o último alento em paz e tranqüilidade. Foi, assim, o primeiro vivente a reconhecer Ulisses regressado. Depois, restou a Ulisses só despachar os desaforados pretendentes dessa para a melhor e correr para o abraço, literalmente, da bela Penélope! Quanto a Argos, celebrizou-se pela imagem de fiel cachorro, melhor amigo do homem, combalido quando afastado dele, mas sempre lesto a reconhecê-lo, não importa quanto tempo tenha se passado!

Muito bem, eis aí então o pedigree das expressões velhuscas que cito no post abaixo. Querendo a Musa que valor mais alto se alevante, prometo trazer outras em futuro próximo...

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bem! "Merece todos os pontos quem uniu o útil ao agradável" ("omne tulit punctum qui miscuit utile dulci"), disse Horácio, com muita verdade. Repito eu, em louvor à aula magna com que nos brinda nesse maravilhoso texto!

Anônimo disse...

O Cid disse, com muito mais erudição, o que eu queria dizer. Fico contente por este período de atualizações mais freqüentes do seu blog!