QUIS O DESTINO, e as peculiaridades da minha carreira, que eu passasse uns dias em Moscou. Encontrei uma imponente e surpreendentemente cálida (em princípios do mês de outubro) capital do extinto império soviético, da qual extraio agora um retrato superficial (posto que breve foi o contato e ínfimo o percurso espacial e temporal por aquela grande cidade) para esta página.
O breve outono moscovita foi, com efeito, agradável surpresa emoldurada por céus azuis, ar extremamente seco, aves parecidas com magpies crocitando, e calçadas acarpetadas por folhas caídas, de formato semelhante ao bordo canadense, de um amarelo-cádmio, que se desfaziam num pó pelo contínuo pisar dos transeuntes. Outro pó cobre boa parte da cidade (pelo que me contam), esse advindo dos incontáveis e onipresentes canteiros de obras, no qual a cidade expõe suas entranhas e um afã frenético de mudança e renovação. Vastas áreas de Moscou parecem estar absortas, 24 horas por dia, em reconstruir-se, obliterar-se e reinventar-se.
E, aparentemente pouco constrangidos pelos tortuosos caminhos abertos por entre as construções, os moradores de Moscou andam, a passos rápidos e ensimesmados, pelos horários mais diversos. Pois, diferentemente do hábito anglo-saxão de completo recolhimento noturno (lembro-me, com assombro e decepção, da descoberta de que o comércio londrino, em sua maior parte, fecha tão logo o Big Ben marque as 18 horas), Moscou é, ao menos nessa época do ano, uma cidade noctâmbula, onde encontrei livrarias abertas às 23 horas e pessoas nas ruas às 3 da manhã. Afora suas peculiaridades de biorritmo, notei, com interesse, a própria aparência das pessoas. Alguém me disse que, em poucos lugares, os dois gêneros humanos parecem tanto demarcar espécies distintas como na Rússia de hoje. De fato, homens e mulheres dão a impressão de seres com evoluções totalmente diversas: as primeiras, quase que invariavelmente belas, de compleição ágil e ar ativo; os segundos, com ar de lavradores, antigos mujiques, lembram criaturas talhadas grosseiramente em blocos de madeira ou pedra bruta.
No mais, ambos dão mostras de aparente afeição ao álcool. Numa animada Tverskaya, em noite de sexta-feira, adolescentes dos dois sexos bebiam muito, sendo freqüente a visão de pessoas com garrafas que, na manhã seguinte, se espalhavam pelas calçadas, passarelas e, principalmente, pelos corredores de madeira que abrem caminho pelas muitas áreas de obras e construções.
Mas o que estimo como a mais interessante memória dessa passagem pela Rússia foi passar pela Praça Vermelha numa manhã de domingo. O local em si é realmente encantador, amplo, limpo e decorado com aqueles edifícios de cartão postal que parecem irreais em suas cores fortes e desenho de contos de fadas -- a Catedral de São Basílio e o Museu Histórico, com sua fachada de divertissement "tchaikovskyano", as muralhas e edifícios do Kremlin --, mas o que quero lembrar é a visão de casais, famílias, crianças, soldados a passeio, turistas de ex-repúblicas remotas e nações do coração da Ásia, caminhando despreocupados naquela cristalina manhã de domingo. E, ali, naquele instante, lembrei-me dos anos da Guerra Fria, quando aquela cidade e aquela gente representavam, para nós, ocidentais, o elusivo outro, o inimigo, a antítese. Pensei naquele instante no horror que seria a concretização da então palpável ameaça da aniquilação total. Pensei no dantesco espetáculo das bombas e cogumelos termonucleares varrendo as amplas avenidas, o estranhamento das torres em estilo gótico-stalinista, as pessoas que viviam, amavam, sofriam e sorriam naquele coração da Cortina de Ferro.
2 comentários:
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Muito bem! Que lhe dêem novas viagens a lugares exóticos, para nos deixar esses retratos tão amplos e intimistas ao mesmo tempo.
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