sexta-feira, setembro 09, 2005

A memória dos mélios

EM SUA HISTÓRIA da Guerra do Peloponeso, Tucídides narra, com a autoridade de testemunha e partícipe, o primeiro grande conflito bipolar da civilização ocidental. As potências dominantes, Atenas e Esparta, não apenas faziam colidir seus próprios exércitos, mas também articulavam um impiedoso tabuleiro de alianças e Estados-satélites ao longo do embate fratricida. Gerações de historiadores e cientistas políticos se debruçaram sobre as malhas desse conflito, buscando enxergar nele a gênese de relações tão complexas quanto as que opuseram as superpotências nucleares no meio século da Guerra Fria. Acredito, porém, que nenhum episódio daquela longa guerra tenha sido tão candente quanto o trágico destino dos ilhéus da pequena Mélios. Em termos simples, Atenas enviou embaixada a Mélios, conclamando os cidadãos da ilhota a cerrar fileiras com os exércitos da Ática contra os valorosos inimigos da Lacedemônia. Mélios, porém, já havia escolhido o lado de Esparta e, fiando-se na proteção de seus aliados, tradicional potência militar especializada nas operações em terra, ignorou o comando de Atenas, emergente poder marítimo.

A escolha dos mélios, expressa na apaixonada defesa que fizeram de seu direito a permanecer isolados daquela luta de duas grandes Cidades-Estados, ainda fascina os estudiosos. Não os demoveu sequer o arrazoado ateniense de que, naquela época e lugar, a orgulhosa cidade não poderia se dar ao luxo de permitir a existência de Estados neutros. Como punição por sua escolha, os mélios foram, todos, passados a fio de espada.

Sempre que penso nesse episódio, imagino a singularidade de um dia que poderia ter sido como qualquer outro nas ensolaradas margens do Mediterrâneo oriental, não fosse o acaso de que, naquele dia – talvez plácido e belo, sob o escorchante sol e diante do azul do mar – as pedras das calçadas e os rochedos da pequena Mélios tingiram-se de profundo escarlate. Os gritos e lamentos ecoaram por um tempo entre as pedras e, depois, fez-se profundo silêncio, quebrado apenas pelo som das aves e o suave rumorejar das ondas, aquelas mesmas ondas que vinham quebrar na praia desde os tempos imemoriais.